domingo, 6 de setembro de 2009

SIMENON: OS AMANTES DESENFREADOS


Existe, na Europa, um preconceito histórico contra a inteligência dos belgas.
Por mim, o povo que gerou, no seu seio, nada mais do que um Hergé e um Franquín, na banda desenhada; um Jacques Brel, na música; ou um Georges Simenon na literatura policial, só pode suscitar a maior admiração.

Passando por uma biblioteca em busca de «Simenon», deparo certamente com dezenas se não centenas de livros - a maioria, é claro, tendo como protagonista o celebérrimo Inspector Maigret, o seu chapéu, a gabardina, o cachimbo. O que não deixa de ser lamentável - não porque Maigret não seja de facto, como detective, uma personagem muito bem engendrada, com uma densidade psicológica notável, que não possuem outros, porventura muito mais conhecidos (de Holmes a Poirot); não porque não sejam romances intelectualmente muito bem urdidos, mas porque a obra de Simenon transborda por todos os lados desse mero registo: é mais extensa e mais variada, toca diversos estilos (as suas memórias, por exemplo, são fascinantes) e é fora do que dele foi mais divulgado que, porventura, lhe encontramos a veia mais original.


Tome-se, digamos, um livrinho praticamente desconhecido, que se chama O Quarto Azul ou Os Amantes Desenfreados. É uma primorosa lição de bem escrever. Nem se trata de um policial, no sentido mais vulgar do género. Sobretudo, falta-lhe a presença de qualquer investigador. Ao invés, estamos perante um par de amantes que se encontram, regularmente, no quarto azul de um hotel de província.

É em volta da morte do marido dela - primeiro - e da mulher dele - a seguir - que se vai desenvolvendo uma história de dúvidas e suspeitas.
O ângulo é o do homem: submetido a uma sucessão de interrogatórios, agora que tudo se consumou - mas o que se consumou, de facto: um duplo homicídio ou a estranha (e conveniente) coincidência de duas mortes naturais? - , ele vai-se questionando a si próprio, apresentando, ao juiz, a si, ao leitor, não os factos, mas as suas interpretações, as suas recordações, o que sabia, o que não sabia, o que vai entretanto descobrindo...

E com que mestria perfeita Simenon se repete, ou seja, retoma constantemente diálogos que já nos mostrara, de maneira que, perante uma nova luz, o sentido do que fora dito se renova, e se percebem, nas mesmas frases que já lêramos três ou quatro páginas atrás, outros cambiantes, uma significação nova, completamente diferente.

Georges Simenon é um desses autores que, sob a capa do que dele se vulgarizou, no limiar da iconografia, mantém secreto o que tem de melhor, guarda, quase oculto, o que mais vale a pena.

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