domingo, 29 de novembro de 2009

O PRIMEIRO ROMANCE POLICIAL




Savater afirma, não sei bem onde, que - muito antes de Edgar A. Poe - a génese do romance policial se encontra na Bíblia. Refere «Daniel».

Espicaçado por esta ideia, fui reler o profeta Daniel.
E, se não me equivoco, o episódio que alegadamente fundaria a escrita policial é o seguinte:

Joaquim casou com Susana, uma jovem bonita, virtuosa e temente a Deus.
Dois juízes, frequentemente apresentados, ao longo do texto, como anciãos, vêem-na e enamoram-se dela: são homens habituados a usar o seu poder de uma forma abusiva, que lhes permita aceder a tudo pela chantagem.
Não querem confessar um ao outro que têm a intenção de seduzir a moça. Um dia em que sabem que ela vai estar no seu jardim, despedem-se os dois, «Então adeus, adeus, até logo, até logo», como se se preparassem para regressar cada um aos respectivos afazeres. A seguir, fazem meia volta e dirigem-se ao jardim. Como é evidente, encontram-se a meio caminho, perplexos.

Velhas raposas que são, percebem imediatamente ao que vai o outro, e combinam unir esforços para convencer a rapariga a entregar-se-lhes.
Assistem, já ocultos no interior do jardim, à forma como - nem de propósito! - Susana dispensa as suas aias, porque está muito calor e lhe apetece banhar-se.
Elas fecham então o portão e retiram-se, sem perceber que os dois anciãos permanecem no interior do recinto, ao abrigo de árvores que os escondem aos olhares.

Enquanto Susana se banha, aparecem-lhe. Explicam-lhe as suas intenções e as suas condições: ou ela aceita tornar-se amante de ambos, ou a acusarão de ter sido encontrada em amores ilícitos com um jovem.
Susana recusa. Sabe o que a espera, mas, como de facto não pecou, não admite pecar para se defender de um pecado não cometido.
E grita. Grita por socorro, ajuda, protecção.
Imediatamente, os dois anciãos gritam, também, e ainda mais alto. Abrem o portão, chamam por gente, que acorre de todos os lados.

A multidão ouve a versão deles, segundo a qual teriam testemunhado como um jovem estivera fazendo sexo com Susana, sob uma certa árvore e, mal os viu, abrira o portão e fugira, sem que o conseguissem deter.

A populaça crê nesta versão. Arrasta Susana para a morte. Condenam-na, pois, sem julgamento.

Daniel, que, alertado por Deus, tem conhecimento da inocência da rapariga, intervém. Declara-se não culpado- surpreendentemente, como se o houvessem culpado, a ele, de ser o desrespeitador da moça, o que espanta os próprios anciãos -, e garante que porá tudo em pratos limpos.

É o progenitor de Poirot. Um pré-Poirot reunindo os suspeitos no salão e preparando-se para conduzir um hábil inquérito. Todos os ingredientes estão, efectivamente, já presentes nesta génese.

Pede que separem os anciãos. E, a cada um por si, faz a pergunta mais simples que se imagina: Debaixo de que árvore se encontravam os dois amantes?
Cada um por sua vez, e cada um por si, sem ter tido tempo nem condições para rever nem conjugar as versões nos seus pormenores, os juízes respondem divergentemente.
Está exposta a sua mentira.

Espantoso, de facto.

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