terça-feira, 22 de dezembro de 2009

CORTÁZAR DE NOVO: O REENCONTRO


O mundo está repleto de misteriosas coincidências. Misteriosas e maravilhosas.
Não tinha acabado há muito de postar   o texto anterior, sobre Julio Cortázar, quando uma colega me disse, já não sei em que situação, que revira um filme de Antonioni, "Blow-up", baseado, vejam bem, num conto de Cortázar - coisa que eu ignorava.

Ainda essa informação não fora completamente processada quando, numa livraria, deparo com uma lindíssima edição, em português, de A Volta ao Dia em 80 Mundos. Uma capa suculenta, amarela.
Folheei, Compro, não compro, compro, não compro?, completamente rendido aos títulos dos capítulos, aos desenhos que ia descobrindo nas páginas, às fotografias que o ilustram. Em resumo: comprei.

E nessa noite, em casa, comecei a ler, já então meio doido e obsessivo, mas entremeando-o com o conto Blow-up (de As Armas Secretas) e os contos de Todos os Fogos o Fogo, que trouxera, entretanto, da biblioteca vizinha. Estou, portanto, literalmente inundado de Cortázares e, de certa forma, já não sou eu, sou já o próprio Cortázar, aspirando e expirando a sua escrita, cardíaco ao ritmo do seu suspense, dos seus meios sofisticados de construção, ocultos mas eficazes, do seu imaginário ilimitado, dos ardis com que me arrasta para, inesperadamente, me quebrar os rins, me deixar cair desamparado de alturas imensas.

A Volta ao Dia em 80 Mundos está para além de qualquer qualificação. Não nos detenhamos numa. Diria que, datando de 1967, este livro prenuncia genialmente o espírito do blogue - é, no conceito, aquilo de que só os melhores blogues se aproximariam, tantos anos depois: delirando entre a poesia, a reflexão mais ou menos sucinta sobre os objectos literários ou musicais da preferência do autor, procurando uma escrita que seja, para o leitor, o mesmo que o jazz para um ouvinte, sem qualquer regra pré-definida, improvisando-se a si mesma numa espécie de contínua luta consigo mesma; deslizando, quando menos se espera, para a memória, o conto, a homenagem, profusamente ilustrada, esta obra torna-se um impressionante exercício de abertura e experimentação, erudição e loucura.

Compreendo perfeitamente a metáfora do jazz a propósito destes textos: «Tudo o que segue», explica-nos Cortázar, «participa o mais possível (nem sempre se pode abandonar uma carapaça quotidiana de cinquenta anos) dessa respiração da esponja em que continuamente entram e saem peixes da memória, alianças fulminantes de tempos e estado e matérias que a seriedade, essa senhora demasiadamente tida em conta, consideraria inconciliáveis». E é um pouco nessa euforia jazzística da esponja que a linguagem de Cortázar se vai tecendo, e experimentando, sempre à beira de um qualquer precipício, em curvas impossíveis, mas que ansiamos por fruir maximamente, toda feita de «alianças fulminantes» e «tempos e estados e matérias» aparentemente «inconciliáveis».

Há linguagens que nos abrem o espírito, que nos atacam e não nos deixam repousar. A de Cortázar amplia-nos como poucas. Não, "amplia" não, porque não se trata de nos aumentar a informação, mas de nos forçar a ler e a pensar diferentemente, a abrir túneis novos, provocando-nos surpreendentes sinapses. Como poucas, dizia. A este nível e desta forma, pouquíssimas: a de Proust, sem dúvida e, entre nós, a de Fernando Pessoa, a de Herberto Hélder, a de Gonçalo M. Tavares muitas vezes, a de José Luís Peixoto, quando no seu melhor. Percebemos até que ponto, nesse movimento livre e libertador, pensar longe de todos os hábitos e mecânicas simplificadoras, pensar entrando em continentes até então inexplorados, não pode ser feito senão através de uma fala que, em todos os pormenores, se vai renovando, também, e desintegrando, e permanentemente refazendo em fantásticas figuras...

Não estou seguramente no mesmo ponto de mim em que me encontrava antes de haver iniciado a leitura de A Volta ao Dia em 80 Mundos.

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