domingo, 28 de fevereiro de 2010

FREUD: PSICOPATOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA



Florinha Afável, no seu blogue, Literatura e Confissões, que venho lendo com grande prazer, postou recentemente um texto sobre Freud, a transferência e a contra-transferência. Florinha reflecte, interroga-se, entre o registo teórico, o registo da sua própria experiência (por exemplo, a propósito da relação professor-aluno) e o do sonho. Seguimo-la nessa reflexão e nessa descrição, deliciados.

O post de Florinha leva-me de volta a Freud, que, em determinado período da minha vida, li obcecadamente. Li tanto, que me cansei. Já na ressaca, como é natural, comecei a pôr todo o seu edifício em causa. Não teria ele uma concepção demasiado saturada de sexo? (Jung acusava-o disso). Não seria o complexo de Édipo uma ficção? (Deleuze e Guatarri nunca o levaram a sério). E a relação entre o ego e o id, sob a fronteira do superego, não poderia ser vista como um drama entre personagens conflituosas, mais do que um processo psicossomático? (A Dona Glória sempre teve tal desconfiança...).

Volvidos muitos anos, e neste momento, em que o Zeitgeist tão céptico se tem mostrado em relação ao pensamento de Sigmund Freud, atacando-o por todos os lados simultaneamente, redescubro-o, confesso, com um novo gosto: é um dos romancistas mais aliciantes que já li.

Repare-se, por exemplo, em Gradiva, magnífico ensaio onde, a propósito de um romance de Jensen, faz uma análise penetrante do
sentido oculto de uma figura feminina, num baixo-relevo romano; ou, então, leia-se Uma Memória de Infância de Leonardo da Vinci, esse outro texto em que, sobre uma base de sustentação tão frágil, Freud compõe uma explicação incrível, porventura incredível, mas, ainda assim, fascinante, a partir da qual todos os meandros da personalidade de Leonardo da Vinci parecem revelar-se.

É nesses livros, tidos por menores, em que trabalha "no concreto", escavando metódica e pacientemente episódios, recordações, fantasias, como, insisto, se tratasse de escrever contos, ou novelas, ou romances, que considero Freud de uma agilidade e de uma agudeza incomparáveis. Mais, certamente, do que nas obras puramente teóricas, onde organiza um sistema que, em inúmeros aspectos, me parece - não improvável, mas insuficientemente provado.

Deste ponto de vista do que mais me interessa em Freud, há, precisamente, um livro imperdível. Refiro-me a Psicopatologia da Vida Quotidiana. Porque, aí, tudo se torna relevante: os detalhes, as descrições, as palavras, a atenção aos erros, aos deslizes, aos menores enganos. E a nossa inocência sofre um abalo quando pela primeira vez nos é mostrado que nenhum engano é simplesmente um engano, mas uma mensagem, uma advertência, um sentido secreto, um sintoma pronto a ser descodificado. Nenhuma compulsão, ou mania, ou desajustamento, são simples erros de funcionamento, mas formas de comunicação, incompreendidas, desrespeitadas e temidas.

Os «actos falhados», os desvios à norma, os comportamentos ridículos e obsessivos perseguem-nos, ilustram-nos, explicam-nos. Nesse livro, os exemplos abundam, e são narrados numa escrita clara, riquíssima, plena de humor e de sentido da eficácia narrativa.

Não é no todo que Freud funciona. Porém, na inteligência dos pormenores, continuará insuperável.

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