sábado, 10 de abril de 2010

ÁLVARO DE CAMPOS: A TABACARIA


Eu não era propriamente um leitor de poesia.
Recomecemos: como leitor de poesia, ter-me-ei ficado, na adolescência, por uma leve náusea a propósito de Os Lusíadas e uma admiração ilimitada pelo Gonçalves Crespo, vejam lá!, poeta um bocadito menor, autor de um poema que eu relia, no entanto, completamente conquistado, e de que cito de memória estes primeiros versos: «Baçus, mulher de Ali, pastora de camelas/ Viu de noite, ao fulgor das rútilas estrelas/ Vail, chefe minaz de bárbara pujança/ Matar-lhe um animal. Baçus jurou vingança./ Corre, célere voa...», e por aí fora.

A minha primeira experiência poética, no sentido em que se falaria de uma experiência mística, deu-se pelos meus dezassete anos. E pelo mero acidente de, numa feira do livro, ter comprado certo livro - porque o dinheiro não chegava para nenhum outro.

E esse livro, que nem sequer era de Fernando Pessoa ou qualquer dos seus heterónimos, mas de um estudioso que já não recordo, citava, quase na íntegra, A Tabacaria, de Álvaro de Campos. Ora bem. Poderia agora pôr-me a romancear, como se estivesse criando o meu próprio mito, mas não vale a pena, porque a realidade se me impõe à memória. Estou a ver-me, tanto como nos vemos a nós mesmos. O cabelo despenteado de que já aqui falei, os óculos graduados que afugentavam todas as miúdas por quem me apaixonava, os pés de lado. Parara num dos caminhos, ladeado pelas barraquinhas das editoras ("stands", como gostam que lhes chamemos), lendo o poema. E não posso jurar senão que, na minha memória, aconteceu isto: o mundo parou.

Escrevi noutro texto que a poesia raramente se me revela na imediatez da sua maravilha. "Raramente". Tenho de a reler, buscando, num nervosismo e numa ansiedade que ainda mais me bloqueiam o acesso. Mas, dessa vez, A Tabacaria tomou conta de mim. Talvez porque há qualquer coisa de uma novela que nos prende desde os versos iniciais, talvez porque somos convidados a entrar em memórias magoadas de infância, talvez porque nos identificamos com o reconhecimento da fraqueza do poeta, aquele seu "humano, demasiado humano" que, na hora da verdade, não encontra congéneres, nem iguais, nem com quem possa partilhar a experiência da inferioridade; talvez por causa da mesquinhez, da simplicidade sem metas que nos é tantas vezes próxima, e ali entra pela mão do «Esteves», que é qualquer uma destas composições de «sol e enchidos, subserviência e fantasia» (Hélia Correia) com que nos cruzamos no dia-a-dia.

E, nesse momento, fui o receptor ideal. Estava vulnerável e só. Lia Kafka, Sartre e Camus. A ausência de metafísica, o reconhecimento do sem sentido da existência cravavam-se-me como uma facada. E a composição (que eu era) de uma cabeleira hirsuta, óculos e solidão exclamou, para si mesmo: «Isto é fantástico!» Segundo a minha memória (ou é já "mito"?), terei mesmo repetido: «Isto é fantástico!»; fui sentar-me num banco, mais adiante, para ler tudo, para guardar e saborear a intensidade daquele estado.

E, desde aí, ando à procura da repetição do êxtase poético.

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