domingo, 25 de abril de 2010

JUAN JOSÉ MILLÁS: O MUNDO o mundo é a rua da tua infância



Considero-me, vaidosamente, um leitor talentoso.
Na verdade, o mérito não me cabe, sequer, por inteiro. O segredo consiste em proceder ao contrário do que sugere o aforismo mortífero de um crítico [pensei que fosse de Oscar Wilde, mas descobri, há algum tempo, que não]: «Nunca leio um livro», afirmou, «sobre o qual tenha de escrever: influenciam-nos tanto...»; ou seja: o meu segredo está na capacidade de me deixar influenciar.

Não só pelo livro em concreto, mas por tudo e por todos quantos me possam ter posto na sua peugada. Sim, presto atenção aos blogues acerca de literatura, às críticas dos jornais, adquiro revistas literárias - mas nem precisava: mais perto de cada um de nós (e, seguramente, por menos dinheiro), há um avô ou um primo, um colega, um amigo, um leitor compulsivo que descobriu ou redescobriu alguma coisa, e não quer senão partilhá-la. Aproveito sempre. Oiço, bebo-lhe o interesse, aspiro-lhe o entusiasmo como quem fuma uma droga particularmente forte e, geralmente, parto em busca da obra. Não me tenho arrependido; não me tenho dado mal.

Uma amiga tem sido responsável por diversas surpresas agradáveis, nos meus mais recentes tempos de leitor. Passando-as em revista, observo que todos os seus conselhos literários me enviavam para romances de autores espanhóis. Poderá ser uma coincidência, ou será que a literatura espanhola, tão pouco cara aos portugueses, lhe toca particularmente?

O último livro de que me falou chama-se O Mundo (o mundo é a rua da tua infância), escrito por Juan José Millás, Prémio Planeta 2007, Prémio Nacional de Narrativa de 2008.

Imagino que os leitores deste blogue possam achar alguma graça aos meus comentários. Muitas vezes, agradar-lhes-á o reconhecimento de afinidades, a confirmação de gostos comuns por autores ou escritos que eu e eles amávamos já. Outras vezes, poderá dar-se que eu diga algo interessante sobre este romance, aquela novela, o outro poema. Mais raramente, acredito (mas posso estar enganado) que alguém se dê ao trabalho de ir ler determinada obra por eu ter sido persuasivo. Não que aspire a que este blogue seja, como Soares dizia da sua presidência, uma «Magistratura de influência». Bem. Mas se tiver momentaneamente esse poder, que se verifique neste caso. Absolutamente. Não adiem o encontro com um texto maravilhoso, todo feito de uma memória à procura da infância. E, nos episódios que perpassam ante os nossos olhos não estão somente imagens da criança que o narrador foi: brilha o próprio espírito da infância.

Porque a criança, nos seus desconhecimentos e nas suas pesquisas, e nas transgressões que essas pesquisas dela exigem, é um misto de poeta e de criminoso. De facto, ela é criminosa sobretudo perante a sua própria consciência: o que esconde aos adultos, mesmo os cêntimos que rouba aos pais, ou as diversas pequenas fugas - não são senão os instrumentos para a sua descoberta de um mundo cheio de alçapões, janelas ou bairros misteriosos. E nunca, como nessa fase de descoberta, é possível a reveladora mudança de ângulo, a perspectiva nova e inebriante, resultantes de algo tão simples como uma janela de cave, com uma insuspeitada visão para a rua, de baixo para cima, que tudo muda, que metamorfoseia completamente o olhar.

Para «Juanjo», o narrador, toda a vida se encontra repleta dessas «passagens» para outros mundos. Mas é certo que ele está rodeado das suas drogas: já para não falar do éter, que surripia, há páginas maravilhosas sobre o sono, o vulgaríssimo dormir, que ele "consome" constantemente, em qualquer lado, e lhe transfigura o mundo, dotando-o de uma estranha natureza, entre o onírico e o real; e páginas encantadoras sobre a febre - e os tão apreciados estados febris, a partir dos quais tudo ganha uma espécie de euforia maravilhosa e um pouco alucinada...

O livro é escrito num registo humorístico extremamente feliz: mesmo as situações ou as personagens macabras, à luz do olhar infantil de «Juanjo», vêm tocados de um halo que os regenera. Nada é autenticamente trágico nas ironias e nos paradoxos da vida. Tudo é só, de uma forma comovente, muito engraçado e muito profundo. Não me lembro de muitos outros livros que me tenham feito rir assim, não só para dentro, em gargalhadas intelectuais, mas para fora, em pequenas sacudidelas de ar e de voz.

É interessante apercebermo-nos de como, em adulto, o narrador mantém, como Proust, a propósito de uma mera sensação actual, o dom de um total regresso à infância: um intenso e pleno reviver do tempo perdido; e de como essa ponte permanece intacta, em grande parte porque o olhar infantil está ainda conservado no olhar deste adulto. De algum modo, a escrita, por um lado, mas também as suas neuroses, por exemplo a compulsiva necessidade de não negligenciar um plano de fuga em qualquer ocasião, são os elementos indestruídos, indestrutíveis, da criança que nunca saiu da rua da sua infância.

«Teria gostado de sonhar este capítulo», escreve Juan Millás, «escrevê-lo sob hipnose. Levei-o comigo para a cama durante dias e dias, dentro da cabeça, para ver se conseguia que atravessássemos juntos a fronteira da vigília.»

Eu sonhei este livro: li-o sob hipnose. Sob um encantamento que ainda se não esvaiu. E, parafraseando Millás: tive febre enquanto li o livro; e o livro tinha febre enquanto o li...

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