terça-feira, 29 de junho de 2010

GEORGE ORWELL E A SOCIOLOGIA



Sei, de há muito, que George Orwell é um autor proscrito. E tenho observado que sobretudo da margem esquerda da política é que surgem os seus detractores mais ferozes e implacáveis. Um colega meu, comunista, tratou-o uma vez, furiosamente, de: «esse escritor fascista».

Ora se atentarmos no percurso de Orwell, no modo como, mais do que dissertar acerca de - ele viveu efectivamente em meios proletários e entre as classes trabalhadoras; acompanhou os mais pobres; sofreu, com eles, a miséria que descreveria em textos magníficos - um dos quais Maria Filomena Mónica não hesita em considerar a obra capital da sociologia -; e se atentarmos, principalmente, na sua participação na Guerra Civil de Espanha, do lado das forças anti-franquistas - experiência de que resultaria uma outra obra maior: Homenagem à Catalunha -, percebemos que não resta qualquer lugar para equívocos. Orwell foi um homem e um escritor politizado e revolucionário, desassombrado e crítico. Um homem e um escritor de esquerda, obviamente.

...Mas, repito, crítico! Aí é que está o busílis. Porque os seus livros políticos - 1984 e Animal Farm - são obras que não poupam a União Soviética de Estaline: vivia-se um tempo histórico em que, para toda a esquerda, a Rússia se tornara incriticável. Vivia-se um período aparentemente decisivo, em que os não-alinhados tinham de "alinhar", ou seja, mesmo permanecendo subjectivamente críticos do estalinismo, se o eram, deviam calar a boca e aliar-se-lhe objectivamente, assumir-se como compagnons de route, quer dizer, «idiotas úteis», sob pena de estar a fortalecer o campo inimigo: mas George Orwell optou por não calar coisa alguma.

É verdade: as críticas que dirige ao comunismo na sua versão estalinista e, precisamente, por outro lado, aos idiotas úteis, os intelectuais socialistas, de hábitos e tiques burgueses e ideias radicais, são verdadeiramente polémicas e devastadoras. Terá, por vezes, exagerado? Pessoalmente, penso que não. Identifico-me até ao fundo com os textos em que ridiculariza realisticamente esse típico esquerdista de salão, desgrenhado, mal vestido e vegetariano (a que hoje acrescentaríamos o inevitável lenço à Arafat, mas é, no esqueleto, uma personagem de sempre), muitas vezes pouco higiénico por, digamos, opção ecológica. É uma crítica pequeno-burguesa? É uma crítica estreita? Uma raivinha de quem está ainda demasiado preso aos modelos convencionais? Quem sabe?

Estou com Maria Filomena Mónica. Animal Farm é uma fábula interessante, mas datada. 1984 é um livro a que devemos regressar sempre, porque nos descreve brilhantemente os mecanismos da construção totalitária que, mais do que proibir ou castigar, molda e manipula a linguagem, vai criando uma nova língua e, através dela, sub-repticiamente, uma certa forma de pensar. Não é, contudo, nos seus romances que encontramos o que George Orwell nos dá de melhor: é nos testemunhos, é nos textos sobre a guerra, sobre a vida num colégio inglês, o trabalho nas minas, as famílias de classe baixa ou a passagem por um sinistro hospital francês para desvalidos. É na descrição dos homens imperfeitos e esperançados, ou imperfeitos e desesperados. É na exposição da sociedade - e de qualquer sociedade, seja um colégio, um hospital ou uma comunidade - como um conjunto de séries, hierarquicamente dispostas, de opressões sobre opressões. Já sabíamos? Marx já tinha posto o dedo na ferida? Estava tudo dito? Ah, não com tanta vivacidade, não deste modo que nos faz ver de tão perto; talvez com mais profundidade e rigor intelectuais, mas não com tamanho talento, sensibilidade e espírito de observação.

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