quinta-feira, 15 de julho de 2010

GRACILIANO RAMOS: ANGÚSTIA

Se me tivessem perguntado «Conhece Graciliano Ramos?», responderia prontamente que sim. Lembrava-me bem de ter lido diversos livros dele: Vidas Secas, por exemplo, São Bernardo ou Memórias do Cárcere.

Florinha Afável, que já percebi como o considera um autor maior, e vem trabalhando sobre ele, refere, porém, outros títulos, que eu ignorava: Infância, Insônia, Angústia.

A menção a Angústia, a propósito, se me não equivoco, da influência de Crime e Castigo, de Dostoievski, ficou a moer-me o espírito. E não descansei enquanto não trouxe de uma biblioteca vizinha o volumezinho, que tenho andado a ler.

E é, certamente, espantoso. Posso dizer que até se conhecer Angústia não se conhece realmente Graciliano Ramos. GR escreve de um modo delicioso, num tom queirosiano, mas com a bela e musical toada brasileira, na descrição de caracteres que, na sua vida remendada, convivendo de perto com a miséria e ausência de horizontes largos, farão escolhas inesperadas, e que - quase sempre - os condenam.

Encontro em GR um sarcasmo terrível, temível, que faz rir, sem dúvida, mas sempre amargamente. As suas personagens raramente têm bondade, raramente são positivas. (Em Dostoievski pressente-se, por vezes, o sopro de um anjo salvador). E no entanto, agrada-me muito essa dimensão tragicómica, que está sempre presente em Graciliano.

Querem ver Julião Tavares? Pois aí está Julião Tavares:

«Foi por aquele tempo que Julião Tavares deu para aparecer aqui em casa. Lembram-se dele. Os jornais andaram a elogiá-lo, mas disseram mentira. Julião Tavares não tinha nenhuma das qualidades que lhe atribuíram. Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor. No relógio oficial, nos cafés e noutros lugares frequentados cumprimentava-me de longe, fingindo superioridade:
«- Como vai, Silva?
« À noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu menos esperava, desembocava na sala de jantar, que, não sei se já disse, é o meu gabinete de trabalho. E lá vinham intimidades que me aborreciam. Linguagem arrevesada, muitos adjectivos, pensamento nenhum.»

É, de facto, magnífico. Hesito: devo desvendar aqui uma peça fulcral do livro, um trecho-chave (a chave, aliás, do próprio romance), como exemplo fulgurante da sua escrita - a tal ponto ela aqui nos agarra, que o leitor parece oscilar, também, ora para trás, ora para diante, à medida da narração do crime? Não resisto. Ei-la, pois:

«Retirei a corda do bolso e em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares. Tudo isto é absurdo, é incrível, mas realizou-se naturalmente. A corda enlaçou o pescoço do homem, e as minhas mãos apertadas afastaram-se. Houve uma luta rápida, um gorgolejo, braços a debater-se. Exactamente o que eu havia imaginado. O corpo de Julião Tavares ora tombava para a frente e ameaçava arrastar-me, ora se inclinava para trás e queria cair em cima de mim [...]. E larguei o corpo, que foi bater numa cerca, por baixo de uns galhos de árvore...»

É extraordinário observar como tão poucas palavras, escolhidas a dedo, constituem magistralmente uma síntese que passa, como um filme, na nossa cabeça.

Já trouxe para casa Infância. Já encomendei Insônia.
E os meus agradecimentos.

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