quinta-feira, 22 de julho de 2010

JAMES WOOD: A MECÂNICA DA FICÇÃO


Sei de duas formas opostas entre si de lidar com o estudo do romance, da poesia e da música, por exemplo.

Uma consiste em tratar a obra em causa como um puro objecto de análise, dissecando-o cientificamente de forma a expor as estruturas sintácticas ou semânticas que lhe subjazem. Desmembra-se o texto ou a melodia, aprecia-se-lhe o rigor dos encaixes, a ideologia presente ou o seu papel na história de uma determinada corrente.
Outra, pelo contrário, valoriza a fruição daquela coisa. Indicam-se pormenores, retomam-se passagens, sublinhando-lhes o sabor e o poder, o encanto, o carácter. Se quisesse denominá-las, poderia chamar à primeira abordagem, digamos, abordagem "técnica", e à outra, abordagem "pop".

Foi em nome de uma, que professores sem chama nos afastaram metodicamente de Os Lusíadas; é em nome de outra, que, todos os dias, críticos superficiais reduzem as obras de arte que lhes agradam à mera e subjectiva questão do gosto. Ou arruínam as que lhes não caíram no goto. (Eu próprio, porventura, me incluiria entre estes...).

Foi-me grato, por isso, descobrir James Wood. É um crítico da moda. Ponto a seu desfavor. Odeia este Auster, o último Auster, denunciando-o como um costureiro de clichés, mais do que um autor. Ponto a seu favor. Mas o que interessa é a revelação de como, nas suas críticas, se fundem gloriosa e deliciosamente essas duas raízes, a técnica e a pop: a sua escrita é fluente, simples, a sua paixão pelas obras é evidente e contagiante, mas, ainda que se não torne maçudo - e, de facto, James Wood nunca é maçudo -, não se envergonha da sua bagagem cultural. Assim, lendo-o, aprendemos, com efeito: observamos os subtis movimentos da mecânica da ficção (A Mecânica da Ficção é como se chama, precisamente, o livro, da sua autoria, que me espreita da ponta da mesa...), construída a partir dos detalhes, das personagens, da linguagem, dos diálogos; pega em diversos exemplos, torna-os tentadores, ilumina-os. Shakespeare, Flaubert, Joyce ou Saramago são alguns dos seus predilectos.

Sou um leitor incansável de livros sobre livros. James Wood, nesta sua obra feita de fragmentos curtos, como aforismos, não faz que amemos mais a leitura, quando a amávamos já; também não faz (retomo, aqui, a fórmula que, a seu propósito, empregava alguém no jornal Expresso) que, quem não tenha talento, se transforme num escritor. Mas trata com brilho casos que ignorávamos ou a que não demos toda a importância, compara-os e usa-os para nos mostrar como, no seu melhor, se expande e trabalha a ficção.

Só um punhadinho de exemplos, para não continuar para aqui a ruminar uma prosa abstracta e seca. À volta da metáfora (e sou um particular apreciador dessa figura), Wood escolhe estas, sobre o fogo: «Aquele impetuoso bouquet de chamas frescas na lareira», de D. H. Lawrence; «As chamas azuis rodopiavam como um cardume de peixes sobre os carvões», de Bellow. (E, claro, a redundância é, aqui, deliberada); ou um protagonista que encontra «fogueiras a abanarem-se», empregando o termo que empregamos para os cães que "abanam" a cauda ou alguém que "abana" a cabeça. (O autor desta última é Norman Rush). E, sem as estragar, o que é fantástico, nem as reduzir aos cordéis insípidos que as movem do interior, mostra-nos como passamos de uma reacção de estranheza, perante cada uma das metáforas, para a clareza e luminosidade da imagem que ela nos impõe: e que, bruscamente, não poderia ser outra, nem mais exacta, nem mais perfeita!

Lukács escrevia que um crítico não tem de provar ser, ele próprio, também, um bom autor de ficção. Quase como se se dedicassem à profissão de "críticos de romances" os que não tivessem talento para se tornar "autores de romances"; James Wood, com a sua escrita viva e muito dramática, é a prova de que certos críticos escrevem com tanto engenho e talento como os autores das obras que eles criticam. É com inveja que o reconheço: Wood lê e escreve acerca das suas leituras exactamente como eu gostaria de ser capaz...

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