segunda-feira, 19 de julho de 2010

PRÓXIMO DE ULISSES [o capítulo 5]

O quinto capítulo de Ulisses é de um apuro técnico incomparável. Reparem bem. A atenção de uma pessoa nunca se fixa num único foco, é verdade: oiço o meu interlocutor, consigo até responder-lhe, fazendo-o acreditar que nada mais, para além da sua conversa, me preocupa naquele momento. No entanto, ao mesmo tempo que lhe sigo o discurso, reparo na sua camisa & vou contando os seus botões & perguntando-me que chiadeira será essa que me chega, repentina, de um determinado andar de um prédio da esquina & interesso-me pelo Alfa Romeo que está precisamente a passar por nós. No fundo, a nossa atenção é uma forma de desatenção activa, em que, num curto tempo, diferentes pormenores do contexto vão trocando de lugar, disputando-nos o momentâneo interesse: ora estão em primeiro plano, ora, sem inteiramente desaparecer, recuam para um discreto segundo ou terceiro ou quarto planos. É assim que funcionamos, nessa espécie de contínua multiplicidade de atenções e sub-atenções simultâneas, nessa dispersão de todos os nossos sentidos por tudo aquilo que nos circunda e invade aqui e agora.

A personagem é Leopold Bloom. Viremos a saber que, saindo de casa, passa pelos correios onde, em nome de Henry Flower, recebe uma carta de uma amante. Não a lê imediatamente, mas sente vagamente, tacteando, que há, no interior do envelope, algum minúsculo objecto. Que será? Entretanto, também descobrimos que tem algumas compras para fazer à sua esposa e que acompanhará, mais tarde, um funeral. Cruza-se com um amigo. Um chato, na verdade: McCoy, que o cumprimenta e troca, com ele, algumas palavras acerca do falecido, que também conhecia. Mas, nessa altura, a sua atenção é atraída por uma mulher elegante.

É tudo isto que Joyce procura captar na sua complexidade, através de uma técnica muito difícil mas de fascinantes resultados: Bloom ouve as palavras de McCoy (falam sobre aquele homem, que havia sido companheiro de ambos) ao mesmo tempo que se continua interrogando acerca do objecto que está no envelope, e que tacteia; e ao mesmo tempo que segue, ao fundo, a mulher, reparando no seu vestuário e sondando-lhe, a partir dos pormenores - meias de renda, folhos -, o estatuto e o interesse sexual. Como cenas que se vão intercalando ou sobrepondo; como universos que não comunicam uns com os outros, mas em que temos de funcionar simultaneamente, sem nos perdermos; como se jogássemos não um jogo de xadrez com múltiplos adversários, mas vários jogos completamente diferentes, sem nos perdermos nem confundirmos.

O resultado é um assombro. Vertiginoso.

Sem comentários: