segunda-feira, 25 de outubro de 2010

AS QUYBYRYCAS: IONANES GARABATUS, ALIÁS JOÃO PEDRO GRABATO DIAS




Agora que está prestes a ganhar uma incontornável - e porventura justíssima - visibilidade o último livro de Gonçalo M. Tavares, um poema em dez cantos, à maneira de Os Lusíadas, apetece-me contrapor-lhe um outro longo poema, anterior, igualmente extraordinário, porém invisível.

Hei-de talvez ainda falar de Uma Viagem à Índia, de GMT. Mas é uma obra que não carece de mais publicidade do que aquela que já a sufoca: tem um prefácio de Eduardo Lourenço; dedicam-lhe a capa e diversas páginas do JL: incensam-na; há-de estar mencionada nos próximos magazines literários. Já o poema a que me quero referir, escrito por um poeta quinhentista, Ioannes Garabatus, com 11 Cantos, intitula-se As Quybyrycas e parece ter-se sumido no tempo. Haverá aí quem se lembre deste «poema éthyco em outavas, que corre sendo de Luís Vaaz de Camões em Suspeitíssima Atribuiçon»? Pois é uma verdadeira obra-prima, a principiar logo pelo jogo entre falsidade e verosimilhança, pelas piscadelas de olho, pelo carácter satírico, enganador e burlesco, e político, como se verá, que o sustentam.

Porque Ioannes Garabatus não existe, e o poema não data de Quinhentos, ao contrário do que garante, mas, mais prosaica e proximamente, de 1972.
O seu autor é João Pedro Grabato Dias; por sua vez, João Pedro Grabato Dias não existe senão como heterónimo do pintor e poeta António Quadros. No entanto, este longo texto (1180 estâncias), que começa por ser uma brincadeira - algo, no limite, semelhante à obra de um falsário, ainda que, em rigor, toda a literatura passe por esse jogo entre o verdadeiro e o falso - constrói-se como uma obra maior, «uma epopeia satírica e de sentimento anti-epopeico», que reconstitui, aparentemente, uma época, com o intuito de que lhe reconheçam os sinais da contemporaneidade, as dores, os males e os erros de Portugal dos anos Setenta, anterior ao 25 de Abril.

Todavia, está lá o rigor complexo da poesia superior, a beleza da expressão e do sentimento, o cuidado e o talento postos numa Arte que se não desleixa e não se deixou confundir, em momento algum, em excerto algum, com a mera propaganda política.

P.S.: Embora não haja sido deliberado, não deixa de ser interessante que a pesquisa, na internet, por imagens que ilustrassem o presente post, acabasse mostrando a diferença entre a visibilidade e a invisibilidade respectivas das obras e dos autores que refiro, através da brutal diferença entre dimensões e cores (ou ausência de cor) num e noutro caso.

domingo, 24 de outubro de 2010

UM TRIO INVISÍVEL

Três livros invisíveis. Encontra-los-ão, porventura, em feiras, em alfarrabistas, na Wook.



O primeiro é o delicioso Contos de Gin Tónic, de Mário-Henrique Leiria.

Uma incursão pelo surrealismo, com alguns contos brevíssimos, quase meros haiku, inesquecíveis poemas (lembram-se da velha que comia ameixas?), outros menos breves, que marcarão, todos eles, definitivamente, o leitor que se aventure.




O segundo, Maus, comic de Art Spiegelman, em que o humor não é senão a capa que envolve uma história dolorosa, pode ser achado em inglês: mas a belíssima tradução portuguesa, da Difel, já não existe em nenhum lado.

Um Estranho Numa Terra Estranha, com o seu título perfeito,
impressionante e dramático, é o romance, que nunca esquecerei, de um marciano que, ao contrário de nós, terrestres, se concentra total e absolutamente em cada coisa que está fazendo num dado momento. Recordo particularmente a descrição de um beijo «trocado» com uma mulher terrestre e apaixonada, que nunca havia experimentado uma tão intensa experiência: naquele momento, para ele, só o beijo existe; sem distracções, sem lapsos, sem a menor forma de ausência: a íntegra entrega!

sábado, 23 de outubro de 2010

SUBSÍDIOS PARA UMA LISTA DE LIVROS INVISÍVEIS

Não é verdade que os livros não dêem dinheiro. Dão. Talvez não todos os livros e talvez não aos autores. Mas se não fosse um objecto de consumo capaz de fazer circular muita massa, não haveria tantos comerciantes de poucas letras a meter-se no negócio, a comprar direitos, a comprar escritores, a comprar livrarias, a comprar editoras, a absorver, a devorar.

Numa simples viagem pela galáxia dos blogues, descubro vários, alguns de grande qualidade, que se dedicam aos livros. Observo que, em geral, se trata de comentar os livros da moda, ou seja, os que estão aí, acabados de ser lançados, os que as editoras e as livrarias querem vender. Propositadamente ou não, conscientemente ou não, esses blogues reduzem-se, pois, a veículos de um monumental marketing. Assim funciona o sistema.

Isto só me enerva porque, entretanto, os livros que não estão na moda; os que não vêm agora mesmo das gráficas, ainda frescos de tinta; os que não acabaram de ser referidos na revista Ler, ou na Actual, do jornal Expresso, ou na horrorosa Os Meus Livros -, aqueles outros, permanecem completamente ignorados e esquecidos. Procurei, ultimamente, o Don Tranquilo, e assustei-me com tamanho recalcamento: não o conheciam; pediram-no à distribuidora, que mandou dizer, muito tempo mais tarde, que estava esgotado. Vale a pena mencionar o episódio porque, antes, já andara, atarantado, à procura de Maus, na tradução portuguesa, e mandaram-me passear; quis um romance de Ray Loriga, mesmo na Língua-Mãe do autor, e nada. Experimentem perguntar por Herzog, de Bellow. Ou por Fahrenheit 451, de Bradbury. Ou por Um Estranho Numa Terra Estranha, de Robert Heinlein, que foi como uma Bíblia para os jovens que nós éramos.

O que eu penei por um certo livro de Mario Vargas Llosa (A Cidade e os Cães), antes de o «agraciarem» com o Nobel. Agora, claro, reeditaram-lhe a obra completa. Na altura, tropeçava em Gabriel Garcia Marquez por todo o lado, que não me interessava, e mal sabiam quem fosse Llosa.

Estou, no fundo, a elaborar a minha lista alternativa, uma lista invisível, de títulos que, por enquanto - até que haja uma nova tradução, ou algum prémio retrospectivo, ou a morte do autor, que tende a tornar a sua obra em best-seller - não interessam às editoras nem às livrarias. Nem ao menino Jesus. Esgotados? Não acredito. Mais facilmente os terão queimado, para não incorrerem no crime de lesa-despezismo que é manterem-nos em depósito!

E é assim que as livrarias nos apresentam uns suspeitos tops de vendas, que duvido que não sejam forjados em função de quem pague mais, como parte deste marketing que nos cria apetências e condiciona o que devemos ler, ao mesmo tempo que nos desaparece da vista - e do coração, e do pensamento - o que poderíamos ler.

Não consigo fugir a este sistema. Nem quero. Mas tento não lhe estar submetido. Comprei, por exemplo, Livro, de José Luís Peixoto, e estou já à espera do próximo de Gonçalo M. Tavares. Mas, entrementes, é claro, faço questão de me não me deixar manipular por essa agenda. Não que tal resistência tenha, em si, alguma importância. Ah, não se leia este texto como um manifesto. Já se entendeu que não estou do lado daqueles que recusam ler o que «todo o mundo anda a ler». Só não abdico de continuar procurando e de, aqui, falar acerca daquilo que ninguém anda a ler. Daquilo que está a um passo de nos desaparecer das memórias curtas.

De cada vez que consigo devolver, à consciência, algum livro recalcado, seja porque mo emprestaram, seja porque o trouxe de uma biblioteca, ou porque existia um depósito em que restava um derradeiro exemplar, recordo esta verdade simples: a literatura é infinitamente mais do que aquilo em que o mercado toca.

AKSÍNIA


Pela escrita de um homem, O Don Tranquilo é um romance extremamente feminino - e feminista, no melhor e no mais nobre sentido da palavra.

Aksínia é uma personagem fortíssima. Uma palpitação em busca do seu sonho, emergindo e erguendo-se, não diria contra a malvadez masculina, porque, na História da Luta entre Homens e Mulheres não existem, propriamente, os bons e os maus; mas, sem dúvida nenhuma, sobre o fundo primitivo da incompreensão masculina, e sobre o fundo da cobardia dos homens: mesmo os que não detêm o poder, como estão num mundo de homens, acertam-se com ele ou, pelo menos, mais facilmente se conformam e baixam a cabeça.

«[Aksínia] encarou bem em Grigóri e impressionou-a o fulgor seco e inquieto dos olhos dele.
«- ... Acho que devíamos pôr ponto...
«Aksínia vacilou. Os dedos dela crisparam-se num pé enrolado de campainhas. De narinas frementes, esperava o fim da frase. O fogo da angústia e da impaciência abrasava-lhe a cara, ressequia-lhe a boca. Cuidava ela que ele ia dizer: «... pôr ponto na tua vida com Stepane.» Mas ele passou a língua, com ar penalizado, pelos lábios secos, que a custo se lhe moviam, e terminou:
«- ... pôr ponto nisto. Hã?»

Esta passagem respeita, na minha interpretação, à diferença de arrebatamento e qualidade de amor, quando este se conjuga no masculino e quando se conjuga no feminino. (Não generalizemos, apesar de tudo); não que se não tenha o direito de abdicar ou recuar, por muito que se haja amado: mas que sentir (ou, concretamente: que sente Aksínia) quando o próprio objecto do sonho não está à altura do sonho?

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

MIKAHÏL CHOLOKHOV: O DON TRANQUILO


É, sem dúvida, mais do que uma fórmula de cortesia, dizer que leio os meus leitores e me deixo guiar por eles. Existe, por exemplo, um livro que não viria talvez a reler se mo não tivessem mencionado recentemente: Jane Eyre; um outro que me passaria totalmente despercebido se mo não apresentassem como a não perder: Diário dos Infiéis, de João Morgado...

Na mesma linha, há um autor clássico que já tinha chamado por mim, mas a que, na altura (dependendo unicamente do meu próprio critério), resisti, e que acabei não convidando para casa: Mikhaïl Cholokhov.

Se, por coincidência, não estivesse agora, justamente, a redespertar para a alma russa, retomando Pushkin, Turgueniev, Tchekhov, Tolstoi, Dostoievski, Bulgakhov,

Se, ao mesmo tempo, Milú não falasse, no seu blogue (Rússia Show) acerca do Don Tranquilo,
Se o modo como ela carinhosamente iluminou Aksínia, personagem desse romance, me não tocasse como tocou

teria eu, alguma vez na vida, vindo a ler o Don Tranquilo (ou «sereno», ou «silencioso»), de Cholokhov? Talvez. Quem sabe? Mas a verdade é que as coincidências se reúnem, como conjugações auspiciosas, para acender um interesse.

Don Tranquilo é uma obra gigantesca. Como, aliás, uma grande parte da literatura russa. Pessoalmente, apraz-me a sensação de ter ainda muito para ler, por voraz e veloz que seja como leitor. Este tem diversos volumes. Ainda estou nas primeiras páginas do primeiro deles. E, ah, sigo escrupulosamente a sugestão de Milú: leio-o na Livros do Brasil, que trouxe, numa edição já muito antiga, do depósito de uma biblioteca.

No início, tudo se move lentamente. Demasiado lentamente. Dir-se-ia que se não move, sequer. Tal qual a própria tranquilidade do rio Don, também este romance parece arrastar-se com uma serenidade pouco audaz. Somos introduzidos nas famílias, insinua-se uma atracção ilícita, vai-se descrevendo uma paisagem humana, impõe-se a omnipresença do rio. Limite, paisagem, sustento, amigo pacífico, inimigo implacável. Um breve sobressalto ocorre quando, a propósito de uma pesca, em grupo, no meio da escuridão fria e chuvosa, uma personagem se perde, outra já não responde aos apelos, amedrontam-se, choram, desesperam.

Mas só com o desenvolvimento de Aksínia se rasga a pacatez do mundo. Só quando esta personagem ganha espaço, ganha sentimentos, ganha vida. Como se, num corpo concentrado na sua própria digestão, se introduzisse, bruscamente, o ritmo e a juventude da cafeína: rebeldia, inconformismo, raiva, amor, tudo se concentra no espírito e no corpo desta jovem - violada, ainda adolescente, pelo pai, sistematicamente espancada e ignorada, mais tarde, pelo marido, abusada pela sogra, invejada pelas outras. Aksínia é, como Antígona, o símbolo da mulher que sempre esteve submetida ao poder e a quem o poder maltratou: e que já só pode sair desse passado submisso através da exigência que não recuará diante de poder algum, invertendo, se necessário, todos os valores e todos os códigos, para reclamar o que, agora, sabe que lhe pertence por direito; e, a quem lhe disser «Espera aí, desavergonhada!», responderá, sem medo:

«Não tenho nada que esperar. Tu não és meu pai. Vai para donde vieste! O teu Grishka, se me apetecer, como-o com os ossos todos, e não tenho contas a dar a ninguém!... Ora aí tens. Engole lá! Gosto do Grishka. E depois? Queres-me bater?... Vais escrever ao meu marido?... Podes até escrever ao atamane. Mas o Grichka é meu! Meu! Meu! É meu e há-de-o continuar a ser!..

E admiramo-la de imediato - «de imediato» significando: antes de medir as consequências do seu gesto, do seu acto, do seu grito; antes de decidir se estamos eticamente de acordo; antes até, talvez, de compreender seja o que for: antes de a compreender inteiramente.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

BIBLIOTECAS CHEIAS DE FANTASMAS

«Em cada livro que se abre pela primeira vez há um efeito de "cofre arrombado". Sim, é exactamente isso, o leitor frenético é como um assaltante que passou horas e horas a escavar um túnel para chegar à sala de cofres de um banco. Ele encontra-se diante de centenas de cofres todos parecidos e vai abrindo-os um a um. De cada vez, o cofre finalmente aberto perde o seu anonimato para se tornar único: há um que tem quadros lá dentro, outro esconde maços de notas, um outro jóias, ou cartas atadas com uma fita, gravuras, objectos sem valor, baixelas de prata, fotografias, moedas antigas, flores secas, dossiês, copos de cristal, brinquedos de criança etc.»

Jacques Bonnet, Bibliotecas Cheias de Fantasmas

terça-feira, 19 de outubro de 2010

OS IMPERDÍVEIS DA LÍNGUA PORTUGUESA: UMA LISTA PESSOAL (E PORVENTURA INTRANSMISSÍVEL)

Não é que, de outros autores, e mesmo destes, não houvesse mais e melhores possibilidades, diferentes «imperdíveis»: mas os livros que elenco são, para além dos meus predilectos, talvez um pouco menos divulgados do que a maioria das alternativas. (Isto explica que, gostando muito de Os Maias ou de O Primo Basílio, tenha preferido, de Eça, o prodigioso, mas menos aclamado, A Capital...)


A Lírica de Camões
Uma grande parte dos poemas de Bocage
Clepsydra, Camilo Pessanha
Eusébio Macário, Camilo Castelo Branco
A Capital, Eça de Queirós
A Correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queirós
Contos, Fialho de Almeida
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
Angústia, Graciliano Ramos
O Livro do Desassossego, Bernardo Soares
A Tabacaria, Álvaro de Campos
Ode Triunfal, Álvaro de Campos
Mau Tempo no Canal, Vitorino Nemésio
Sinais de Fogo, Jorge de Sena
Aparição, Vergílio Ferreira
Um Amor Feliz, David Mourão-Ferreira
O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago
Ó, Nuno Ramos
Um Jogo Bastante Perigoso, Adília Lopes
Toda a Sophia
Últimos Poemas, Nuno Moraes
Dramaticamente Vestida de Negro, Fernanda Botelho
A Fenda Erótica, Hélia Correia
Contos de José Rodrigues Miguéis
As crónicas de António Lobo Antunes (mas nenhum livro dele em particular)
Os Degraus de Parnaso, M. S. Lourenço
Os Passos em Volta, Herberto Helder
Boca Bilingue, Ruy Belo
Quatro Últimas Canções, Vasco Graça Moura
Jerusalém, Gonçalo M. Tavares

Haveria outros? Pode ser. Não estão aqui? Bem, se calhar esqueci-me. Ou, se calhar, de facto, não os considerei imperdíveis. Ainda nos casos em que os aprecio...

JOSÉ MAURO DE VASCONCELOS: MEU PÉ DE LARANJA LIMA, UM POST POUCO INTELECTUAL


Tecnicamente, não é difícil fazer chorar. Desde as tragédias da Antiga Grécia que um artista competente sabe que meios empregar. Se pensarmos bem, aliás, as fórmulas a que os blockbusters recorrem estavam já contidas na génese do Teatro Grego.

Recordo-me de um livro que tem merecido, julgo eu, pouca consideração por parte dos intelectuais exigentes. Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos, foi lido por mim quando tinha treze ou catorze anos; e sei que chorei ao longo de toda a leitura, desde as primeiras páginas, em que se entra no quotidiano de um garoto pobre, com uma incontrolável imaginação, reprimida por uma família que não tolera a sua criativa hiperactividade, até às últimas, que fecham essa narrativa do seu amadurecimento, num mundo muito duro, procurando alimentar, sorrateiramente, os sonhos, as fantasias e os amigos que o possam ensinar a lidar com a realidade.

A leitura da infância de Zezé é, também, a compreensão do seu crescimento e da sua aprendizagem. Mas que quer isto dizer? Que «crescimento», que «aprendizagem» são esses? Ou que se aprende, em última análise, nesses ritos de iniciação, senão uma única coisa: que o princípio do prazer nunca vence em face do princípio da realidade? Que todas as fugas estão, a prazo, comprometidas? Que o jogo e a brincadeira não são senão, nas crianças, uma preparação para os futuros «jogos de poder» ou «jogos de dinheiro»? Que o sonho não comanda a vida? Que a tristeza se instala, que o desemprego não é uma brincadeira, que as árvores realmente não falam e que, se a partir de uma certa idade insistirmos em continuar dialogando com elas, nos encerram no hospício? Ou que os melhores amigos morrem?

Chorei durante a leitura deste livro. Saberia já que chorava, no fundo, por mim mesmo?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

GOSTO DE LISTAS

No seu último livro, Livro de nome, José Luís Peixoto expõe a lista de títulos (em francês, o que, no contexto do romance, faz todo o sentido) que teriam constituído a educação literária de Sidonie, uma personagem:

Gigi, Colette
Le Rouge et le Noir, Stendhal
Le Dernier Jour d'un Condamné, Victor Hugo
La Montagne Magique, Thomas Mann
Lumière d'Août, William Faulkner
Madame Bovary, Flaubert
L'Éducation Sentimentale, Flaubert
Les Hauts de Hurle-Vent, Emily Brontë
Mrs. Dalloway, Virginia Woolf
Le Père Goriot, Balzac
L'Amant de Lady Chatterley, D. H. Lawrence
Les Aventures de Huckleberry Finn, Mark Twain
L'Étranger, Albert Camus
Bel-Ami, Maupassant
Les Frères Karamazov, Dostoievski
La Dame aux Camélias, Alexandre Dumas
Portrait de l'Artiste en Jeune Homme, James Joyce
La Philosophie dans le Boudoir, Sade
Frankenstein, Mary Shelley
Germinal, Zola
Paris est une Fête, Hemingway
Mémoires d'Hadrien, Marguerite Yourcenar
1984, George Orwell
Belle du Seigneur, Albert Cohen
Le Procès, Kafka
Voyage au Bout de la Nuit, Céline.

Admirável lista!

domingo, 17 de outubro de 2010

GUSTAVE FLAUBERT: MADAME BOVARY


No tom irónico da sua escrita, na captação do ridículo e do mesquinho em certas personagens, na provocação, quase escandalosa, que é o contínuo regresso aos temas tabu, mas também na infinita compreensão pela motivação oculta dos seus anti-heróis e das suas anti-heroínas que, mais do que seres pérfidos, deveríamos ver como humanos em choque com uma sociedade hipócrita e opressiva, o grande precursor de Eça de Queirós é, certamente, Gustave Flaubert.

Não vejo nada que menorize um autor no facto de ele ter sido literariamente formado pelos melhores. Só menciono a evidente paternidade porque, tendo descoberto (e admirado) Eça de Queirós primeiro do que Flaubert, foi com uma inquietante sensação de reconhecimento que, um dia, há muitos anos, principiei a ler Madame Bovary. E se pensei «Isto é digno de Eça de Queirós» é porque, afinal, Eça de Queirós fora digno do seu mestre.

Madame Bovary é um romance ardentemente emotivo. É, na verdadeira acepção da palavra, um Livro do Desassossego. Sucede sentirmos piedade do marido enganado, cheio de amor, bondoso e entediante, e irritarmo-nos com o descaramento ou com a insensibilidade de Emma. Mas não é possível não sermos, secretamente, seus cúmplices na identificação de um fogo ambicioso, o desejo desmedido de algo, uma sede de romantismo, uma carência de brilho, uma estranha saudade de futuro - um futuro sublime -, uma esperança e uma espera que o quotidiano contrariam e acinzentam.

Como Ana Karenina, ou Luísa, perdida de amor por seu primo Basílio, também a experiência de Emma Bovary é a do tédio perante um mundo irrepreensível, que, dela, só espera a felicidade da integração.

O que estala a superfície destas obras, mais do que a solução ética para que aparentemente nos encaminhariam, sob a forma da morte ou da queda da «criminosa», isto é, a punição social para o desvio, é a perturbadora sensação de que nada poderia, realmente, ter ocorrido diferentemente. De que nenhuma água aplaca a sede de vida. De que não há moral que justifique ficarmos, nem ideal que pague partirmos. Que somos seres irresolúveis. Ou que a nossa condição é a da escolha: e que, de um ou de outro modo, todas as nossas escolhas são erradas.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

À ESPERA DE CHOLOKHOV

Em Rússia Show, blogue de uma recente leitora do Profissão: Leitor, descobri a referência a Mikhaïl Cholokhov. Os textos de Milú, entusiastas e entusiasmantes, fizeram-me partir imediatamente em busca deste autor, Prémio Nobel, contudo relativamente pouco conhecido em Portugal.

Lembro-me de que a Europa-América (ou seria a Bertrand?) tinha editado, há muitíssimos anos, o romance O Don Tranquilo, em diversos volumes. Está esgotado. Encomendei a tradução no português do Brasil, que se chama O Don Silencioso. Aguardo-a.

Mas esta ligeira discrepância faz-me temer a tradução. A Milú, minha leitora, familiar com a língua russa, traduziria o termo do título por «tranquilo», ou por «silencioso»? E conhece a tradução da Ed. Record? Recomenda-a?

terça-feira, 12 de outubro de 2010

E ASSIM TERMINA O DESAFIO. FORAM OS MEUS 10 LIVROS EM 10 DIAS

10º dia.

10ª: Qual o livro mais velho que tem ou já leu?

Pertenceu a minha mãe; quando comecei a vasculhar estantes, esse livro já existia em nossa casa há muitos anos. Recentemente, reencontrei-o e trouxe-o comigo. É, curiosamente, uma peça de teatro. Não estamos a falar da obra mais «antiga» que já li (seria a Odisseia ou a Ilíada, naturalmente), e sim da edição mais «velha» que já me passou pela mão. Este volumezinho é dos anos quarenta.

The Winslow Boy, de Terence Rattigan.

Suponho que nunca foi traduzido: usávamo-lo para treinar a leitura do inglês.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

VLADIMIR NABOKOV: DESESPERO

Era Wladimir Nabokov um jovem de 33 anos quando escreveu e publicou este romance, originalmente em russo. Ou seja: tão longe ainda da sua maturidade literária - se nos lembrarmos de que terá já 56 anos aquando da edição de Lolita, sua obra maior e perfeita - e, todavia, em Desespero, exibe já todos os indícios do seu talento, como sementes inatas. Aliás, a vários títulos, Desespero prenuncia Lolita: para já, na construção do narrador/protagonista, que, aliás, se chamava, no primeiro, Hermann Hermann (rascunho do célebre Humbert Humbert, do segundo): nos dois casos, uma personalidade doentiamente cheia de si, sem escrúpulos, no limiar de uma sinistra loucura. Porém, sobretudo na escrita, no estilo, no domínio da síntese, na elaboração de frases muito tensas, que são, frequentemente, verdadeiros achados, momentos inesquecíveis de leitura, adivinhamos, no jovem Nabokov, o génio em que Nabokov se tornará.

Numa descrição, Hermann emprega, inadvertidamente, uma palavra que detesta. Não por razões estéticas, mas psicológicas. Porque lhe desperta estranhos e fundos fantasmas, labirínticos e infinitos pavores. É a palavra «espelho». Quando dá conta dessa intromissão, interrompe o que vem contando, fala do significado que os espelhos têm para a sua mente distorcida, ensaia uma breve psicanálise. Depois, quer reatar, zanga-se com os leitores, acusa-os: «É difícil falar se nos interrompem constantemente». Esta passagem ilustra o humor de Nabokov, que me é tão caro.

É um humor que está presente na própria forma da escrita. Trata-se, de algum modo, do texto de um louco. Isso justifica, em parte, o seu carácter de meta-texto: Hermann questiona-se, a cada passo, acerca do que está escrevendo, põe em causa as palavras que escolhe, arrepende-se, propõe-se riscar períodos inteiros, decide não o fazer, embora deixando claro que estão errados e que não exprimem o que lhe interessava dizer: quem domina o acto de escrever não é já a sua razão, mas a memória, a cuja incapacidade pede constantemente contas. O terceiro capítulo, por exemplo, inicia com esta auto-interrogação: «Como começaremos este capítulo? Proponho diversas variantes para escolha.» E apresenta-as, uma por uma, pondo-as em confronto e distanciando-se criticamente de todas elas.

Ou seja, sob pretexto de um diálogo com o leitor, este romance é, fundamentalmente, um diálogo do narrador consigo mesmo - inquieto, sarcástico, manipulador, jogando com os dados a seu bel-prazer, afundando-se no negrume do seu inconsciente e debatendo-se com a cisão entre ele e si mesmo. Aquele outro, com que se encontra, poderá ser um homem igual a si? Ou trata-se de si separado de si? O tema do duplo é, como se vê, um excelente pretexto (e típico de Nabokov, que o retomará em O Olho) para uma narrativa delirante: o leitor perguntar-se-á se está simplesmente a ser enganado; se o narrador se mantém fiel a uma realidade estranha, porventura inverosímil, porém factual; ou se não será no âmago da sua mente conturbada que se encontra a justificação para aquela aparição especular.

É um romance fácil? Não é um romance fácil. As interrupções daquele monólogo que se apresenta como em fase de rascunho, com interrupções, regressões, auto-imprecações, por engraçado que seja, cansa, impede a progressão? Sem dúvida. Mas não deixa de ser curioso observar que alguns dos romances mais interessantes que se escreveram são romances que não progridem. Que se interrogam indefinidamente. E que, nessa auto-interrogação, recuam sobre si.

9º DIA, 9ª PERGUNTA E UMA VIAGEM À INFÂNCIA

9ª pergunta: Qual a série de livros de que mais gosta?

Esta pergunta é ambígua. Que se entende, precisamente, por série de livros? Uma colecção, por exemplo? Uma obra em vários volumes (como Em Busca do Tempo Perdido, como Guerra e Paz?)

Lembro-me de uma série de livros de Júlio Verne. Gostava de uns, gostava menos de outros. Mas essa «série» está enraizada nas memórias da minha infância. Mais tarde, os «Sete» raptaram-me a atenção. Opto por estes.

Série O Clube dos Sete, de Enid Blyton

(E todas as séries de Enid Blyton).

domingo, 10 de outubro de 2010

8º DIA

8ª pergunta:

Que livro menos recomenda?

Então, escolhamos uma resposta imprevisível. Mas honestíssima. Um dos livros que menos recomendo, talvez o que menos tenha recomendado é, contudo, um livro de que gosto muito, de um autor russo, que principiou a escrever em inglês relativamente tarde, o que o não impediu de se transformar num mestre da língua inglesa. O seu poder de síntese é extraordinário; o domínio da alusão e da metáfora devem ser objecto de uma contínua aprendizagem por parte de aspirantes a escritor.

Refiro-me a Lolita, de Vladimir Nabokov.

Por que o não recomendo? Por um par ou por um terceto de razões óbvias. Porque tenho medo que me interpretem mal. Porque vivemos num tempo em que, mesmo na literatura, os tabus são cultivados. Porque é politicamente incorrecto e talvez até eticamente repreensível gostar desta obra. É mesmo? Claro que não. Mas, pelo sim pelo não, e porque as pessoas são muitas vezes patetas, evito recomendá-la.

sábado, 9 de outubro de 2010

ISAIAH BERLIN: «O OURIÇO E A RAPOSA»



Já tive oportunidade de garantir que o termo "preparação" seria, neste caso, um termo excessivo. Mas a verdade é esta: com o objectivo de realizar uma palestra, na Biblioteca, para comemorar o centenário do falecimento de Tolstoi, tenho andado a reler, com um cuidado especial, Guerra e Paz. Ao mesmo tempo, procurando uma rede de informações acerca desse romance e desse autor, voltei a desaguar numa obra de Sir Isaiah Berlin, A Apoteose da Vontade Romântica: uma série de ensaios no seu inglês luminoso, espirituoso, muito vivos e subtis, conduzidos por uma inteligência política aguda e por uma cultura vasta e heterodoxa. Um desses ensaios, bastamente citado, aliás, é «O Ouriço e a Raposa», acerca da visão que Tolstoi tem da História.

O título, que sempre me intrigara, remete para um verso do poeta grego Arquíloco: «A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante.». (Infinitos são os astuciosos recursos da raposa; o ouriço, em contrapartida, não tem senão um único: concentrar-se sobre si, esperando que o inimigo se magoe nos seus espinhos...)
Dando um sentido específico a esta distinção, Isaiah Berlin considera que alguns escritores seriam escritores-raposa e, outros, escritores-ouriço. A ideia é, de facto, curiosa.

Entre os escritores-raposa, ou seja, aqueles que sabem muitas coisas, irrequietos e velozes, os que tendem a dispersar-se em inúmeras personagens e temas, aqueles cujos livros nunca se parecem uns com os outros, aqueles cujos interesses se fracturam irreconciliavelmente, poderíamos referir homens como Montaigne (por causa dos seus maravilhosos ensaios em que, a pretexto de falar unicamente sobre si próprio, se reparte por temas como as mulheres, a educação, a amizade, os livros ou o corpo); ou, por exemplo, Jean-Paul Sartre (que da filosofia ao romance e ao teatro, dedicando-se também à biografia, à auto-biografia e à política, não deixou um só instrumento por tocar). Por outro lado, entre os escritores-ouriço, aqueles que sabemos que, por muito que escrevam, não escrevem senão acerca de uma única verdade, procurando recorrentemente unificar, sob a força de gravidade desta, tudo aquilo em que põem o dedo, estaria Hegel, estaria Ibsen.

É interessante pensarmos nos escritores que prezamos, sob este ponto de vista. Eça de Queirós, diria eu, é um ouriço. Gonçalo M. Tavares, sem dúvida, também. Nuno Ramos é uma raposa. Fernando Pessoa é o rei das raposas.

Alguns, não sei. Sophia? Whitman? Proust? (Berlin considera-o um ouriço, e eu, inseguro, divirjo: embora compreenda a razão...). Julgo que o problema se deve a que podem ser simultaneamente uma ou outra coisa, num ou noutro aspecto ou consoante o critério; ou ser uma coisa, sob a aparência de uma outra.

Seria, segundo o próprio Berlin, o caso de Tolstoi, que, assumindo-se a si próprio como um ouriço, até pela concepção de História que expõe em vários ensaios, no entanto, ao criar, cria como uma raposa. Isso explica, de resto, o carácter fragmentário, intrinsecamente "desunido", de Guerra e Paz. Se se torna praticamente impossível reduzi-lo a uma narrativa linear, é porque é uma visão da guerra enunciada num texto que se funda, de certa forma, numa guerra interna. Gravitamos ao redor de diferentes famílias russas, e cada uma dessa famílias é um universo em expansão e em choque com os demais. Verdades, sentimentos, interesses contraditórios se combatem, a partir de perspectivas múltiplas, que se não fundem nem coincidirão. Fala-se, num mesmo capítulo, se não numa mesma página, em russo, em francês ou em alemão; passa-se do fervor religioso para uma euforia da liberdade; da paixão para a melancolia.

A alma russa apresenta-se, ali, em todas as suas cintilações e possibilidades, mas com um grau de intensidade que, como afirma Rogério Casanova, é sempre extremo: tanto na alegria como na dor, tanto no amor como no ciúme. É o texto de uma raposa, claro.

7º DIA: ACERCA DE PROUST E NÃO SÓ

E eis-nos chegados ao 7º dia de um desafio que me pareceu estranho e curioso. Se uma lista é sempre uma série de reduções (tenho consciência de que, por cada livro escolhido em cada um dos dez dias, há centenas de possíveis outros que elimino), não deixa de ser também verdade que cada escolha tem, subjacente, uma história ou uma razão (que resumo); e que, no conjunto, os dez livros formarão uma Gestalt, uma forma própria, um conjunto que me revela: é, sob o modo de uma minúscula biblioteca de livros que se complementam ou repelem, uma expressão do que eu próprio sou como leitor.

7ª pergunta: Que livro mais recomenda?

Não posso responder intemporalmente. Em diversas fases da minha vida, em diferentes momentos de descoberta e paixão, recomendei, obviamente, diferentes livros.
Porém, se quiser assentar sobre o livro que mais recomendei nos últimos meses, a resposta será:

Proust era um Neurocientista, de Jonah Lehrer.

Apesar do título, Lehrer não fala unicamente acerca de Proust. Fala de Withman (atenção, Beatrix!), de Virginia Woolf e de muitos outros criadores (na poesia, na música, na pintura, na culinária até) do ponto de vista daquilo que, na obra de cada um deles, era, artisticamente, se assim podemos dizer, uma antevisão de algum conhecimento que a "neurociência" mais tarde confirmaria.

Recomendei, emprestei, indiquei.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

PRÉMIO NOBEL 2010


Não vejo mal algum em que o Prémio Nobel seja, frequentemente, uma mera eleição política. Até certo ponto, compreendo e aceito que há áreas onde o reconhecimento que um tal prémio confere se torne o objectivo a ter em conta, condicionando a escolha, de maneira que esta possa vir a ser usada como manifesto, forma de consciencialização ou de pressão. Poderia o Prémio Nobel da Paz, por exemplo, deixar de ser um modo de intervenção política? Podia a sua escolha ser inocente? Não haver sido planeada com o intuito de dar força a um projecto, ou de obrigar um regime a mudar (pense-se nos prémios recebidos por Arafat, Peres, Rabin, Ramos Horta, Obama ou Liu Xiaobo)?

No caso da literatura, é claro, a politização do prémio torna-o ambíguo e, em última análise, irrelevante. Não porque a literatura não seja política. Mas porque o é num outro sentido: não como refém das urgências do tempo, dos interesses e maquinações de grupos, da defesa de minorias ou do ataque aos regimes corruptos. Porque, enquanto subordinada, em primeiro lugar, a uma visão política, a literatura diminui, desvirtua-se, abrevia-se. Reduz-se: a um texto de propaganda, a um instrumento pedagógico e didáctico, a uma condicionadora de mentalidades.

Temo que, em diversas momentos, o Prémio Nobel de Literatura funcionasse como uma chamada de atenção, valesse como uma negociação para impor o autor que melhor representaria um ideal ou uma virtude. E, por isso, não tenho dúvidas de que se escolheram escritores menores, escritores menoríssimos, considerados , todavia, a voz «necessária» do Zeitgeist.

Em nome dessa perspectiva politicamente correcta, Jorge Luís Borges nunca foi agraciado, nem poderia tê-lo sido. E quem se atreveria, por exemplo, a propor um homem como Ferdinand Céline, raivoso anti-semita, repugnante colaboracionista e também - já agora -, um dos maiores escritores da língua francesa?

Postos estes dois exemplos, várias vezes a atribuição do prémio me surpreendeu. Sucedeu quando calhou a vez a Saul Bellow - homem não especialmente de esquerda, bem pelo contrário. Ou a V. S. Naipaul, que dificilmente se quadraria nos critérios estreitos e estritamente ideológicos a que o Nobel nos habituara. Ou, como agora, em 2010, a Vargas Llosa, odiado por todas as esquerdas pelas suas opiniões, pelos seus artigos, pelas suas cumplicidades, pelos seus desprezos.

Gosto muito dos livros de Vargas Llosa. A Cidade e os Cães, que talvez venha em breve a comentar, é certamente o meu preferido. Posso dizê-lo. Di-lo-ei sem ter de me sentir minimamente comprometido com as posições políticas de Mário Vargas Llosa.

E, portanto, congratulo-me com este prémio que, do ponto de vista literário, é muitíssimo justo.
E congratulo-me pelo facto de o Nobel - independentemente de escolher quem pessoalmente me agrada, ou não -, ser capaz, ainda, de uma escolha que me desorienta: que desmente e se não cinge aos critérios pobres de que o acusava.

6º DIA

dia, 6ª pergunta: Que livro menos lhe prendeu a atenção?

Lembro-me de um, entre outros candidatos ao desonroso lugar. Requisitei-o na Biblioteca da minha escola. Que raio me terá feito escolhê-lo, entre outros, tão bons? Talvez a capa dura, típica das obras do Círculo de Leitores. Talvez o título. Talvez o nome do autor, que me era desconhecido, mas não completamente, transmitindo-me, nessa indefinição, a ideia de que se trataria de «um autor a conhecer». Ora, não sei, não me recordo. Em suma, trouxe-o.

Chama-se O Plano Perfeito, de Sidney Sheldon.

Andei dois ou três dias com ele na pasta. Reiniciei-o várias vezes. Devo ter acabado por chegar a metade do todo. Era vazio, insípido e em nenhum momento de nenhuma linha de página alguma me aqueceu ou me arrefeceu. Nenhuma ideia me fez parar ou pensar. O que li, li como um autómato. Ou não propriamente como um autómato porque, interiormente, ia pensando em outras coisas, planeando passeios ou visitas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

E NO 5º DIA, UMA 5ª PERGUNTA

5º dia, 5ª pergunta.

5ª: Que livro mais lhe prendeu a atenção?

No fundo, a resposta é sempre insuficiente porque, em rigor, o livro que mais me prendeu foi, também, o de que mais gostei - ou seja, em síntese, Proust, Proust, Proust, o omnipresente Em Busca do Tempo Perdido. Mas para não dar uma resposta única, posso sempre assumir que, não contando com esse - que estará sempre subjacente, mas é outra coisa, todo um outro universo -, então o livro que mais cativou a minha atenção, ou - noutro sentido - mais exigiu da minha atenção, foi:

Crítica da Razão Pura, de Imannuel Kant.

Não foi, sequer, da obra de Kant, o livro que mais me interessou. Ou mais me marcou. Não. Foi aquele em que cada período pediu absolutamente todos os recursos da minha atenção.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

ACERCA DOS MEUS LEITORES

Quando iniciei este blogue, não tinha outro objectivo que não descobrir um território onde pudesse escrever sobre livros. Não à maneira de um crítico, mas à maneira de um leitor, ou seja, de um sujeito embrenhado no acto de ler, com as suas preferências injustas, as suas impressões infundadas, as suas impaciências, ignorâncias, futilidades, falibilidades.

Não contava com uma especial afluência de visitantes. No entanto, aos poucos, e por mero acaso, fui sabendo de pessoas que me seguiam; de algumas que faziam, da vinda a este blogue, uma espécie de passeio higiénico: uma rotina saudável. Não me perguntem porquê, não saberia explicá-lo. O certo é que aconteceu. Tive o prazer de descobrir que, nos longínquos EUA, o meu primo não perdia a maioria destes posts, e levava a sério algumas recomendações; percebi que, no Brasil e em Portugal, atraía, como por magia, gentis e afáveis leitores, cada um com o seu próprio blogue - sobre literatura, sobre psicanálise, sobre media. Cruzei-me, entretanto, com jovens que haviam sido outrora minhas alunas, e me adicionavam, e me acompanhavam as leituras.

De modo que fui entendendo como, por algum ignoto motivo (que deverá mais a certa conjunção astral do que a qualquer mérito meu), juntava, ia juntando, juntei, sem plano ou know-how, um grupo de leitores talentosos, cultos, de qualidade. (Muitos, quase todos). E, neste momento, sinto-me eufórico com o grupo de seguidores que, aliás, vem paulatinamente aumentando. Habituei-me às suas fotos, aos seus ícones, aí na margem esquerda desta página. É um conjunto mais-que-perfeito. Até aquele certo jovem que me não lê: um sujeito que, colando-se-me ao blogue, não pretendia senão usá-lo como publicidade. Queria que votassem nele para o Big Brother Brasil, seja lá isso o que for! Bem: se um dia esse seguidor se fosse embora, se a sua foto desaparecesse de lá, a sua ausência trar-me-ia saudades...

E assim nos fomos familiarizando. Agora, um comentário inesperado pôs-me diante de Isabel, com a sua poesia, que, serpenteando em redor de objectos queridos - fictícios ou não, como sabê-lo?, os seus livros, a sua música, a sua sala, a sua varanda, as suas flores, o seu gato, os «remendos» a que se dedica... -, constitui um mundo no interior do qual tudo se move subtilmente, como num jogo de espelhos; e nada é o que parece, ou nada é só o que parece, mas símbolo, mas metáfora, mas alegoria de algo mais: como se, sob o mundo íntimo que se nos vai desenhando, suspirasse um outro mundo, uma outra vida, uma outra verdade.

Portanto, nesta altura - sou totalmente sincero -, tornei-me tanto leitor dos meus leitores quanto eles são meus leitores. Sinto-os respirar. Nunca este blogue fez tanto sentido. Nunca, como agora, sentar-me a escrever foi um acto tão pleno e tão consciente de comunicação. Muitas vezes são silenciosos, meus leitores. Raramente comentam, mas estão lá. Sinto-os, vejo-os. Ou não os vejo, mas prevejo-os, não os sinto, mas pressinto-os. Esperam-me. De algum modo, sei-o.

E ESTAMOS NO 4º DE UM TOTAL DE 10 DIAS

4º pergunta: Qual o livro mais caro que já comprou?

Aí, sou positivo. Lembro-me bem. Comprei-o para oferecer; curiosamente - ou não -, a pessoa a quem o ofereci, ofereceu-me, na mesma altura - Natal? - idêntica obra.

História do Feio, de Umberto Eco.

Era um livro merecidamente caro.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

TOLSTOI: GUERRA E PAZ


Para uma sessão na Biblioteca da minha escola, preparo, em conjunto com um aluno, Guerra e Paz, de Tolstoi.

Lev Tolstoi morreu há cem anos. Essa é a ocasião que se irá comemorar. Guerra e Paz é, por sua vez, o romance que, intrigado, notei que esse moço, na escola, costumava trazer debaixo do braço. Convidei-o, pois, para uma parceria inédita: um professor e um aluno (que, por acaso, nem é aluno desse professor), conversando, diante de uma plateia de jovens, acerca de Guerra e Paz.

Trata-se de um livro monumental, traduzido para português, nos últimos anos, numa série de quatro pesados volumes. Mais tarde, um jornal principiou a vender a mesma obra, como suplemento, às quintas-feiras, em dez fascículos muito bonitos (vai no segundo), magrinhos, contendo, o primeiro, um prefácio de António Lobo Antunes e, todos eles, ilustrações de Júlio Pomar.

A preparação que venho fazendo consiste, para já, em reler a obra, semana após semana, nesta nova edição. Percebo, pelas palavras de Lobo Antunes, que, à época, o romance de Tolstoi, regularmente publicado como folhetim, causou certa perturbação. Mesmo escritores maiores e perspicazes (como Henry James) se queixavam, em Guerra e Paz, de uma indistinção de momentos, lugares e famílias: como se Tolstoi fosse um deus com vocação para regente de orquestra, e usasse abusivamente a sua omnisciência de forma a harmonizar - e a desarmonizar - centenas de instrumentos, simultaneamente, esquecido de (ou indiferente a que) o ouvinte - ou leitor - não goza da mesma capacidade de tudo ouvir e ver e compreender ao mesmo tempo.

Lamentavam-se também, por outro lado, de uma fusão pouco conhecida, à época, ou pouco usada (mas que Tolstoi ousava) entre o histórico e o fictício. Aquela convivência de indivíduos historicamente reais - Napoleão e o Czar, quanto mais não fosse - e personagens inventadas é mais um instrumento que o deus regente convoca para a sua sinfonia, a qual, para várias pessoas, dificilmente não é senão uma soma arbitrária de ruído. Tome-se, como exemplo clássico dessa criativa confusão entre o real e o imaginário, toda a cena em que o general Kutúzov, figura histórica incontornável da guerra, passa revista aos seus regimentos fatigados, e entra, por causa de um casaco que não respeitaria as normas, em choque com Dolókhov, personagem fictícia, um jovem bêbedo e arruaceiro, que fora despromovido a soldado raso.

Não é fácil. Ressinto-me sempre da leitura de autores russos, de que, não obstante, gosto muito. Os nomes russos, que nos não são familiares, e que, ao longo das páginas, são substituídos, sem advertência prévia, por diminutivos ou títulos (a princesa, o conde, a condessa), tornam a leitura, muitas vezes, lenta, embora nunca penosa. Mas Guerra e Paz é extraordinário, apesar dos escolhos e dos óbices. Só aos melhores, aos deuses melómanos, é dado o poder de construir uma tal catedral que possui, em si, a brusca e vertiginosa mudança: já viram como ele transita de situações recatadas, íntimas - uma rapariga que chora, oculta, roída de ciúmes; uma mulher que disseca a carta da sua melhor amiga, interrogando-se sobre as verdadeiras intenções e tentando ler nas entrelinhas dos episódios que esta narra; um jovem que se declara à sua amada -, para a descrição dos movimentos complicados de exércitos, que mobilizam milhares de homens? Ou para recepções, chás ou bailes que, nos salões aristocráticos, continuavam a fazer-se, como se os rumores da guerra iminente ainda não fossem senão matéria de conversa intelectual e fútil?

Em Tolstoi, é claro, a penetração psicológica é sempre avassaladora. Por detrás de uma aparente simplicidade de certas personagens surgem imprevisíveis e cruciais tensões de personalidade. Penso em Pierre, por exemplo, cuja inibição leva a que o tomem por um idiota, bondoso e um tanto inconveniente, mas em que se revelam, passo a passo, camadas de forças, dúvidas, contradições, convicções, aspirações, pensamentos, cobardias e coragens, que o tornam nosso irmão.

Colocaria Guerra e Paz naquela categoria de livros que têm muitas exigências: exigem tempo, disponibilidade, paciência, concentração, ou seja, um estado de espírito próprio e o desejo de se acertar com as mudanças de ambiente ou situação. Mas que, como certas - raras - pessoas, se pode dar ao luxo de exigir tanto. Porque o que, em contrapartida, tem para oferecer, é imenso. É memorável.

3º DIA: 10 LIVROS EM 10 DIAS

3. Qual o livro mais barato que já comprou?

Nem uma dúvida. Nenhuma, absolutamente.

The Great Gatsby, de F. Scott Fitzgerald.

Trouxe-o, recentemente, de uma viagem a Houston, por menos de 3 dólares.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

2º dia: 10 Livros em 10 dias

Mais uma pergunta:

2º - Que livro mais odiou?

Não tendo a odiar livros. Não tenho problema algum em deixar um livro a meio, quando sinto que estou começando a odiá-lo. E se algum me desagradou, passado tempo acabarei por esquecê-lo.

Se, apesar de todos estes considerandos, há, mesmo assim, um livro que me vem imediatamente à memória quando associo o verbo "odiar" a uma leitura que tenha feito, é porque de facto o odiei. Irremediavelmente! Medíocre, mal escrito, sem ideias, gratuitamente ordinário e grosseiro, triste, vazio, inepto.

Ou seja: o livro que mais me odiei foi: Vai uma Queca?, de Miguel Dias

domingo, 3 de outubro de 2010

10 LIVROS EM 10 DIAS: UM DESAFIO VINDO DE LONGE

Ana Pádua, de quem descobri, há pouco, o blogue, lançou um desafio chamado 10 livros em 10 dias.

Em cada um desses dez dias, se responderia a uma pergunta sobre um livro.

A primeira pergunta é:
1. Qual o livro de que mais gostou?

E a essa respondo, sem pestanejar: À la Recherche du Temps Perdu.

Pode parecer um truque sujo, porque A Busca é constituída por sete livros, não por um.

Assim, sendo mais específico, responderia: o último. (Sendo que só faz sentido, no entanto, ler esse último após haver lido os seis anteriores).

Portanto, a minha resposta, agora mais precisa, seria: O Tempo Reencontrado [VII volume de Em Busca do Tempo Perdido], de Marcel Proust.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO: LIVRO


A língua portuguesa é de uma docilidade e de uma doçura espantosas; pode não parecer, quando a ouvimos, às vezes, pronunciada no sotaque fechado, de vogais que mal se percebem e consoantes suprimidas, que é típico de alguns portugueses. Mas na ideia de que esta língua é, em si mesma, uma pátria, pressentimos a imensidão sublime de possibilidades que o próprio Pessoa foi realizando, como, por exemplo, Camões, Bocage, Cesário ou Pessanha, antes dele, e tantos outros, depois.

Em alguns escritores, isto é, em certos oficiantes da língua portuguesa, é evidente o exercício da escrita como gozo. Esta palavra é banal. Desprezo-a um pouco, como tendo a desprezar, talvez injustamente, todas as palavras banais e a maioria das pessoas banais. (E talvez por isso, antes que mo atirem à cara, um pouco a mim mesmo). Mas a questão é que, diante de alguns textos, percebemos o prazer que têm de ter dado a escrever. É um prazer diferente, mas cúmplice daquele que os leitores encontram, depois, na sua leitura. Mesmo que haja dor oculta sob as palavras, mesmo quando o dizer do texto se move sobre a experiência de um certo sofrimento, mesmo aí, há um prazer quase masoquista que se imiscui: a irrecusável alegria de sentir como até a tristeza pode tomar parte da beleza, e oferecer-se, ao leitor, como algo que a língua do corpo e da alma absorvem, saboreiam.

Há, da parte de alguns intelectuais muito «intelectuais», um parti pris relativamente a José Luís Peixoto, que não compreendo bem. A sua poesia, sobretudo, é, muitas vezes, associada a um trabalho menor. Não sei. Tenho nas mãos, neste momento, o seu último livro, que se denomina precisamente Livro, e reconheço, nas páginas, aquela escrita a que me referia, essa escrita que se não faz sem fruição. Há uma delicadeza das palavras que é, claramente, uma procura de dizer como se não diz habitualmente: não existem chavões nem frases feitas, não existem fórmulas assentes nem metáforas gastas. É um trabalho de puro gozo, da pura fruição, do gosto em alargar a língua pátria (isto é, a língua como pátria). Do gosto de criar o inesperado, o improvável, o fresco, afastando-se sempre do déjà-lu.

Quando se faz isto, corre-se algum risco. Para já, o da ilegibilidade. Mas José Luís Peixoto mantém-se sempre compreensível; nenhum atrevimento linguístico o arranca a nós. Ouvimos o eco de Saramago na sua escrita (em que também se evita uma compartimentação demasiado rígida entre falantes), mas até no seu modo de beber na fonte saramaguiana, José Luís Peixoto é singular, é único, é ele.

JLP consegue aproximar-se tanto de nós, seus leitores, que nesta história polifónica, em que todos os mundos que se cruzam entre si são mundos em que podemos penetrar e compreendemos, até o que poderia parecer uma relação sórdida (entre a «mulher casada» e um jovem retardado, como se dizia antes) tem algo de sensual e de belo, sem perder, contudo, a verosimilhança, sem perder a sua autenticidade, no artifício da poesia.

Livro pode, efectivamente, chamar-se Livro: primeiro, porque há, de facto, um livro central neste romance, pousado numa mesa de Biblioteca, que, a partir das letras que vão sendo sublinhadas à vez, possibilita a comunicação entre dois desconhecidos; mas principalmente porque se trata de uma auto-referência: este livro é Livro, no sentido em que, nas suas 263 páginas, se iluminam,
perante nós, as epopeias de pessoas que se perdem umas das outras e se procuram umas às outras, histórias paralelas que no infinito se interceptarão; a pobreza, a sordidez, um desconhecimento das consequências dos actos do desejo, a expulsão do paraíso: com a diferença, em relação a «O» Livro, quer dizer, a Bíblia, que, aqui, o paraíso inicial é já só um paraíso relativo: mais o lugar da rotina do que o da felicidade. Mas que rotina impede que o desejo pulse nos corpos em crescimento, que o amor alicie, que o passado surja para pedir contas? Que paraíso - e retomo, aqui, o que subjaz ao meu post sobre Jesusalém - que paraíso não está, afinal, desde sempre, e desde o interior de si mesmo, destinado a perder-se?

Como há um anónimo que me diz que não percebe a última parte (será a última parte do livro, ou do meu post?), vou reformulá-la: «há outra justificação, essa sim, fundamental para que este livro se chame Livro. Sabe-o quem o tenha lido até ao fim: mas, como é evidente, não a poderia desvendar aqui». Pronto!

sábado, 2 de outubro de 2010

UM COMENTÁRIO BELO, MUITO BELO

Está sob o texto que escrevi acerca de Mrs. Dalloway.
É um comentário de uma leitora (presumo, porque escreve no feminino), que não assina senão «Eu», e que não sei quem seja.

Mas é tão bonito, está tão bem escrito, toca-me tanto, que não resisto a destacá-lo. Sei que não se importará. Seja quem for.

«Estava sentada na cadeira de verga da varanda, aquela que chia como um pássaro desasado. Naquele momento límpido, remendava letras num caderno antigo. O Sol que vinha de dentro era meigo e trazia Primavera aos cíclames escarlates dos vasos que os meus pés descalços contornavam. Lá dentro também havia pessoas cinzentas e animais ferozes, mas para esses não encontrei linhas de remendar.
Estava, portanto, nesta minha oficina quando a vi passar. Ela ia ligeira pela rua abaixo, com um vento sorrateiro na bainha da saia rodada, como um arpão em mar alto. Estacou o passo num letreiro néon onde se lia: "Donna Tartt". Entrou, evaporou-se no algures.
No dia seguinte também lá entrei. Os meus olhos despertos quiseram saber mais. O papel de parede lembrava-me a biblioteca do Teotónio, aquele que um dia me fugiu para o lado invés do mundo. Por causa dele e dela (a "Donna Tartt", como passei a chamar-lhe), visito regularmente esta sala, onde as molduras aprimoradas guardam histórias sem remendos.
Dizem que o dono trabalha nas obras, escritas. Sim, claro».

«Eu»