segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O QUE AMO EM E. DICKINSON

Convencionou-se que dispensar maiúsculas é rebelde e irreverente; não conheço nada mais «à moda», mais fácil, mais banal. Parece-me particularmente revolucionário, pelo contrário, o emprego de maiúsculas por Emily Dickinson, que carrega de palavras importantes e significativas os versos, a cada passo, obrigando a que nos detenhamos na aura aristocrática que a maiúscula confere.

Toca-me a necessidade que tem de quebrar as frases com os seus travessões, aqueles traços que interrompem blocos de sentido, para que não atravessemos demasiado precipitadamente para o bloco seguinte.

Toca-me que se pressinta uma visão de perfeita intensidade sob cada um dos poemas que escreveu: a compreensão funda de uma ideia que habita outro mundo, não o mundo das palavras mas o de certos imensos e esplendorosos silêncios, embora nas palavras tenha Emily de se exprimir e comunicar.

Toca-me a ausência de um sistema: cada poema é único e só. Nasce, clareia e dissolve-se. E assim deve ser, para que haja espaço para um outro poema - novo e solitário momento único, que não subsiste para além de si nem se relaciona com nada para lá de si.

Toca-me que um poema seu seja tão difícil quando a ele chegamos e iniciamos a leitura - e tão simples e intuitivo quando o lemos e dele partimos, plenos daquilo em que ele nos transformou.

E gosto da confusão: da ideia de que tudo sobrou em cadernos que ela foi preenchendo com muitas centenas de poemas, os quais não podemos catalogar nem organizar segundo critério nenhum, uma vez que o caos reina nesses cadernos e nem uma elementar sucessão temporal se deixa aí determinar.

sábado, 27 de novembro de 2010

EMILY DICKINSON: POEMA 249 [1861]


Wild Nights - Wild Nights!
Were I with thee
Wild Nights should be
Our luxury!

Futile - the Winds -
To a Heart in port -
Done with the Compass -
Done with the Chart!

Rowing in Eden -
Ah, the Sea!
Might I but moor - Tonight -
In Thee!
***
Ou, na tradução discutível (como qualquer uma seria) de Nuno Júdice:
-
Noites Selvagens - Noites Selvagens!
Estivesse eu contigo
As Noites Selvagens seriam
A nossa luxúria!
-
Fúteis - os Ventos -
Para um Coração no porto -
Inúteis as Bússolas -
Inútil o Mapa!
-
Remando no Paraíso -
Ah, o Mar!
Pudesse eu atracar - Esta noite -
Em Ti!

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

CLARICE LISPECTOR: A PAIXÃO SEGUNDO G.H.


Tantas razões podem iniciar a aproximação a um autor, a uma obra que desconhecíamos. É um período exaltante, aquele em que antecipamos uma certa descoberta: falaram-nos do escritor, ou da obra, ou de um seu romance em particular; criámos uma figura da sua escrita: durante esse tempo, talvez não estejamos obcecados, mas um artigo sobre ele, qualquer coisa que ouvimos, a alguém, acerca do que escreveu, vêm acutilar-nos a ansiedade e o desejo, arrepiam-nos, reafirmam a convicção de que temos de o procurar, precisam o grau de urgência dessa descoberta a fazer.

Sucede-me frequentemente. Às vezes, todavia, por uma certa conjugação de factores, adiamos o encontro. Não encontramos a obra, ou - sim, pode até ser isso - temos algum medo do desapontamento. E sentimo-nos culpados, como se fugíssemos ao destino, a um sentido maior. A um encontro que nos permitiria, quem sabe, encontrarmo-nos também connosco.

Com Clarice Lispector foi assim: houve um livro dela que não consegui ler. Está algures entre outros, e um dia procurá-lo-ei convictamente. Mas, muito tempo volvido sobre essa experiência frustrada - ou esse prometido encontro em que passámos ao largo -, li certo post, que me agitou. Citava-se aí uma verdadeira declaração de amor que Clarice fazia à língua portuguesa. Outras referências se acumulavam e me surpreendiam. Não é verdade que, quando começamos a reparar em algo, tudo parece, repentinamente, falar-nos disso? Pois bem, em redor de mim, cada vez mais, tudo eram sinais de Clarice, apontamentos de e sobre Clarice, a voz de Clarice, a sombra de Clarice.

Até uma gigantesca biografia, publicada, entretanto, por um norte-americano, e que por todo o lado se comentava: não a li, mas folheava-a irresistivelmente nas livrarias, como um vagabundo fumando beatas do chão: a relação complexa com sua mãe, judia perseguida pelo nazismo, o Brasil como o refúgio da família, a psicanálise da escrita, a paixão pela vida. Já prefigurava um novo encontro com Clarice: feito, é certo, de indecisão e hesitação, medo de me decepcionar, falta de coragem.

Leio A Paixão Segundo G. H. E o texto encantatório remete-me inesperadamente para A Nuvem do Não-Saber (que é um livro místico, de autor anónimo, inglês, em cujo prefácio sublinho: «um dos mais belos tratados espirituais de todo o século XIV»); não é uma comparação artificial, nem fútil, nem para armar. A cada passo, o romance de Clarice evoca, em mim, A Nuvem do Não-Saber. E aquelas palavras, que o classificam, eram as palavras que procurava, porque o romance de Clarice é um dos mais belos tratados espirituais jamais escritos em língua portuguesa.

Quem era a narradora e protagonista, antes de uma certa transformação? Esta a pergunta que conduz as primeiras páginas, os primeiros capítulos, como se de perceber o que se era, e o que se perdeu, dependa perceber o mundo em que se entrou, a desorganização em que se está, e o que se ganhou. Se é que "perder" ou "ganhar" fazem qualquer sentido, perante esta mudança em direcção ao que, por vezes, se designa (Clarice designa) por horror: sem dúvida o desamparo e o desnorte, a "desorganização", o sublime em que sentimos saudades do ser estável que fomos, e do que nos era essencial e deixou de ser:

«assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira perna me assusta [... ] era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar».

É um maravilhoso tratado espiritual: e, como tal, não o lemos (e estou ainda no princípio) sem que, de algum modo, uma interrogação nos não domine, as nossas prioridades se não redefinam ou, pelo menos, não sofram um estranho e assutador abalo.

domingo, 21 de novembro de 2010

BORGES, LEITOR DE DANTE

Reproduzo esta pintura belíssima, que pedi emprestada ao blogue de Bea7rix Kiddo (o magnífico Tenho Estado a Ler Whitman), porque me parece a ilustração adequada ao contexto de uma conversa que ela e Morcegos no Sótão travaram, então, e no mesmo blogue, a propósito de Dante. Pensei meter-me nessa conversa, comentando, por minha vez. Mas preferi não me tornar intruso.

A questão aparecia por causa de A Divina Comédia. Nenhum dos dois a tinha lido, ambos desejavam fazê-lo. Morcegos no Sótão preocupava-se, entretanto, com o italiano que deveria dominar para se abalançar a uma tal leitura. Bea7rix recordava a premiadíssima tradução de Vasco Graça Moura - que, porém, se encontra esgotada. Mas, com certa ironia, propunha-se aprender italiano depois de ter lido A Divina Comédia.

Ocorreu-me uma pequena conferência em que Borges nos apresenta a sua própria leitura, fascinante, do poema de Dante. [Se não se trata de uma conferência, seria uma entrevista entre várias que lhe haviam sido feitas não me lembro já por quem. Ainda procurei por aí, na minha estante, entre livros que julgo ter adquirido na mesma altura. Não o encontrei, pelo que terei de a reconstituir de memória].
*
O que Jorge Luís Borges conta é como, na sua juventude, aprendeu o italiano precisamente com A Divina Comédia. Possuía, obviamente, uma edição bilingue: mas, tanto quanto me parece, as traduções do poema são, na sua maioria, bilingues. Borges ia de eléctrico, a cegueira ainda o não invadira, e aproveitava um percurso demorado para mergulhar no texto. Começava sempre pela versão original. Lia um primeiro conjunto de versos, tentando apreender-lhes o sentido, o que, curiosamente, conseguia fazer com mais facilidade do que temera. Afinal, o italiano - e mesmo o italiano de Dante; não sei, aliás, se Borges não diz: principalmente o italiano de Dante - não é tão irredutivelmente diferente do castelhano (ou do português), que não seja possível retermos uma ideia, uma significação. Então, lia a tradução; depois, porventura, voltaria aos mesmos versos anteriores, em italiano, para confirmar, para consolidar.
*
A seguir, lia os seguintes, e assim progredia. Este era o seu método. E percebeu que, ao fim de algum tempo - ou seja, ao cabo de umas quantas viagens -, o seu italiano se aperfeiçoara o suficiente para prescindir da tradução, a não ser pontualmente.
*
Pessoalmente, gosto muito da tradução feita por Sophia. É muito cuidada, muito bonita. Mas não me lembro de que seja bilingue.
A de Vasco Graça Moura, que li mais tarde - e emprestei, e nunca mais recuperei... - é bilingue. Está esgotada? Raios!

sábado, 20 de novembro de 2010

É A MINHA VEZ DE JOGAR


Recebi um dardo de B. Kiddo.

Presumo que deverei enviar os meus próprios dardos-escolha de blogues altamente recomendáveis.

Levei tempo a decidir-me.

Por um lado, porque não deverei devolver dardos. A ideia, como já li algures, é mais «passa a outro e não ao mesmo».

Por outro lado, porque vejo muitos blogues de grande qualidade.

De maneira que fico por 4. Unicamente. Justificação: são quatro descobertas que não dispenso. Dois deles, que eu saiba, estão fora desta rede de blogues que se conhecem unzaozoutros, se seguem e se amam unzaozoutros. E nem têm especialmente que ver com literaturas: apenas com bom gosto.
Ei-los:

MARGARIDA VALE DE GATO: MULHER AO MAR



Há várias maneiras de um livro ser ou devir invisível. Perdoem-me a insistência, como se me tivesse especializado no tema da «literatura invisível» ou, mais prosaicamente ainda, como se estivesse com uma tecla emperrada, marcando continua e obcecadamente um único carácter.

Mas para além de livros que desaparecem no tempo, e as editoras esqueceram de vez, outros existem que, apesar de recentes, no entanto não vingam. E evaporam-se. Não deixam sequer um rasto, a pegada a que teriam direito, e a que nós, leitores, temos direito.

Falo de um, que foi publicado em Abril de 2010; teve uma segunda edição de 300 exemplares. (Que é isso? Uma insignificância...). A seguir, desapareceu. Haviam-me falado acerca dele (e sou um ouvinte muito atento a esses rumores), não o encontrei, tive de o pedir, esperar, tornar a pedir, esperar ainda mais. Tenho-o por fim nas mãos - é um dos 300 exemplares da 2ª edição de Mulher Ao Mar, de Margarida Vale de Gato, a preciosa tradutora de vários autores ingleses. E não sei se de outros.

Gonçalo M. Tavares é um génio. A sua poesia é mesmo extra-terrestre. Visita-nos, vinda de um planeta desconhecido. Viagem à Índia é um livro maior. Mas o que quer que faça tem circulação imediata, exibição delirante, infindáveis comentários de sumidades que não há forma de se sumirem. E é um ganho que assim seja. Mas, na minha elementar opinião, Margarida Vale de Gato é uma poeta absolutamente extraordinária. (Emprego, para ela, o termo "poeta" deliberadamente, com uma vénia à minha amiga Elisa, que reserva "poetiza" para as poetas pequeninas, que se dedicam ao tricot das palavras). De modo que algo de injusto se insinua neste seu veloz regresso à invisibilidade. Vens do nada e ao nada voltarás!Se não injusto para a autora, que acredito que se não preocupe com tal absorção pelo esquecimento prematuro, sem dúvida para os leitores que a não descobrirão.

Este livro de umas setenta e tal páginas arranca-nos ao sossego e atira connosco para pinturas que principiam por nos enganar: sob a paciência e a virtude femininas, que a sociedade consagra, o que inesperadamente se abre, em cada um dos seus poemas, é a cortina para o sublime espectáculo dos segredos mais ocultos da mulher: a raiva e o desejo - mas isso não é novo, temo-lo vindo a saber, cada vez mais, nas últimas décadas -, a loucura do ciúme ou da culpa, a transgressão assumida, a hipocondria, o mero e tremendo ressabiamento. A sombra de Sylvia Plath, Emily Dickinson, Christina Rossetti ou Ana Karenina (que será, para todo o sempre, a sombra dessa luta contra os homens que as dominaram, ou desprezaram, ou incompreenderam até à morte...) pressente-se em todas as páginas.

Esta segunda edição acrescenta um pósfacio de Hélia Correia: as palavras com que fizera a apresentação do livro, no seu lançamento, em 25 de Abril; pretexto para equacionar a poesia de Margarida Vale de Gato como uma revolução. Relendo o texto de Hélia Correia, detenho-me nos meus sublinhados, «um rompimento assim a si mesmo se espanta. Perde as margens», «é a infiltração de uma desordem, de um descaramento - essa mulher de Rilke que bruscamente afasta as mãos do rosto de maneira que ele vai colado nas suas palmas, deixando, por momentos, o nada em seu lugar»; «A que com elas [com essas mulheres] fala alcançou já o outro lado do poema, aquele em que pode dizer o que quiser, como quiser, com as palavras que quiser». É talvez preciso uma mulher, e uma mulher como Hélia Correia, para compreender esta poesia «do outro lado», já sem proibições, que infiltra uma «desordem» e um «descaramento».

Toca-me particularmente, em Mulher ao Mar, a gramática revolucionária e ululante, como se as quebras de uma desordem interior, vivida por dentro de uma alma fragmentária, carecessem de se exprimir sob a forma de rupturas ou desvios sintácticos. Como se reconhecesse na poesia "rap", ou nos poemas de certos cantos alentejanos, a forma irmã, expressão de uma outra respiração.
Uso literalmente, aqui, o termo "respiração": se o poema, como a canção, exige "ser dito", ser entoado em voz alta, então torna-se evidente que a respiração monocórdica, compassada, com pausas previstas, a que recorremos aquando das leituras de outros textos (nas leituras consideradas "bem feitas"), de nada nos serve aqui. Algo de uma asma plena de energia tem também de se infiltrar para que, ao dizer estes poemas, nos reecontremos com o seu negro sentido, nas asperezas do entrecortado, das pontes destruídas, das frases rompidas. Das vírgulas inexistentes, ou cortanto inesperada e provocadoramente a fluência. Pensando bem, não espanta que o tivessem suprimido. Toda a revolução, lembra Hélia Correia, tende a integrar-se: apomos-lhes, a prazo, «formas sossegadas», «uma assembleia, uma constituição, um modelo europeu». É o caso do 25 de Abril. Ou, então, não há formas sossegadas que se lhes aponham e as solucionem. Não há reconciliação. Como o livro de MVG. Que fazer? Ainda para mais ninguém lhe pega? Delete!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O TRIO

«Henriqueta mastigava devagar, apreciando o porco. O seu corpinho seco punha naquela mesa a única nota de uma vida cheia de ocupações correntes, ligadas umas às outras por horas bem saboreadas, más e boas. Ângelo era animado e com um dito a propósito para tudo. Fazia sair as conversas dos cantos mais refolhados da insignificância e do silêncio. Pegava nos assuntos cautelosamente, como no rabinho de um rato; depois deixava espernear o rato, arredado e radiante. Por esse lado parecia-se muito com a irmã; mas separava-os um mau humor corajoso e esfuziante em Henriqueta, um pouco enfastiado e sorna no solteirão. Sentados à mesa, frente a frente, eram como dois primeiros violinos afinados em contracanto, de uma virtuosidade prodigiosa. Januário vibrava de quando em quando à cabeceira a sua arcada de basso, decisiva nas mudanças de andamento

Mau Tempo no Canal

VITORINO NEMÉSIO: MAU TEMPO NO CANAL



Já o disse: não existem muitos livros que me dedique a reler integralmente. Por estranho que pareça, há uma obra que, sim, releio, ou que vou relendo: devagar, como não poderia deixar de ser, pari passu, sem urgência, ao acaso das possibilidades: Em Busca do Tempo Perdido. Outra é Viagem ao Fim da Noite, do imprevisível Céline. Bem, há algumas mais: aquelas que me foram emprestados pelo meu primo, em inglês, e vim a reler, anos mais tarde, em traduções portuguesas: The Catcher in the Rye, Uma Casa para Mr. Biswas, Margarida e o Mestre, A História Secreta.

Há casos portugueses? Lembro-me de um: Mau Tempo no Canal. Vitorino Nemésio.

Ao tempo em que o Professor tinha, na televisão, um programa que marcou o país, com as suas digressões aparentemente desconexas, que seguiam, porém, um fio perfeito, que tudo religava e concluía, vivia ainda eu em Moçambique. Vejo revisitações da sua prestação televisiva, e delicio-me com aquela excentricidade, no mais nobre sentido da palavra.

Li Mau Tempo no Canal já tarde na vida. E devorei a obra enorme, sobre famílias numerosas, nas ilhas sublimes, entre o paradisíaco e o inclemente. Mas, quando se tem vinte anos, lê-se a obra da mesma forma que as ilhas: como um romance paradisíaco e inclemente, cheio de momentos inesquecíveis, de uma beleza que me tocou, e de paisagens (ou deveria escrevever "passagens"?) demoradas e cansativas. Aos quarenta anos, contudo, reli-a e fiquei sem palavras. Casualmente, comprei recentemente uma edição de bolso. Olhava para ela todas as noites, sempre com vontade de a (re)iniciar. Abri-a hoje. Sentei-me, de sofá em sofá, em busca de melhor luz. E, logo na primeira página:

«Os olhos de Margarida tinham um lume evasivo, de esperança que serve a sua hora

E:
«[João Garcia] entrava em pormenores. Margarida ouvia-o agora vagamente distraída, de cabeça voltada às nuvens, como quem tem uma coisa que incomoda no pescoço, um mau jeito

Ou:
«Estavam ao alcance da respiração um do outro

Isto por exemplo, porque todo o romance é feito desta poesia que se debruça sobre as mínimas descrições, como a de um som errado e característico («o grande portão verde de padieira grossa, que ao abrir bem atrás, devido a uma posição mal calculada, batia na borda da sineta arrematada do naufrágio de um veleiro»), como a das paisagens, feitas em miscelâneas de paz e de guerra, como a das personagens, que nunca são bonecos de cartolina no meio de um cenário de opereta.

Neste Romeu e Julieta, que decorre entre 1917 e 1919, encontramos a captação dramática de uma época e de uma sociedade de classes, fortemente hierarquizada e conflituosa; e encontramos algo que vejo frequentemente referido a propósito de outros romances de autores açoreanos: a consciência aguda da insularidade: uma ruptura iminente com os amados que demandam o continente, a saudade, a lonjura; a pequenez do seu espaço, sempre em face de grandezas incomensuráveis e terríveis, o mar, o céu, a tempestade. Mas é claro que, se vos dissesse que estas foram as dimensões que mais me impressionaram no romance de Nemésio, não poderia estar a ser sincero. Nunca li Mau Tempo no Canal como um Tratado de Sociologia ou de História. É como compreensão psicológica que a história da luta e do cruzamento entre famílias, ao longo do tempo, me entusiasma. E estas personagens são todas: muitas das mais secundárias parecem-me maravilhosas, nos pequenos tiques, nas suas tendências (veja-se, entre outros, dois dos irmãos Garcia, Henriqueta e Ângelo), nos seus recalcamentos, na senilidade ou na maldade.

É um texto excêntrico, como o seu autor: divaga porém reencontra a marcha; parece escapar de qualquer eixo e, contudo, deixa-nos, em cada ponto, dúvidas que nos fazem fome para iniciar o capítulo seguinte. É um texto brilhante: no tema, na estrutura, na complexidade, na simplicidade em que essa complexidade se resolve: considero Mau Tempo no Canal, juntamente com Sinais de Fogo (Jorge de Sena) e Um Amor Feliz (David Mourão-Ferreira), o livro maior de um trio absolutamente fundamental na literatura portuguesa contemporânea.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

HOMENAGEM A TOLSTOI, FALECIDO EM NOVEMBRO DE 1910

Amanhã, dia 18, na Biblioteca da Escola Professor José Augusto Lucas, pelas 10 h. 30 min., certo aluno e eu mesmo estaremos dinamizando uma sessão de homenagem a Lév Tolstoi, falecido há cem anos, e que já neste blogue por várias vezes referi. (Referi, aliás, ambos: Tolstoi e a pometida homenagem...)

A sessão terá demasiadas variáveis que não controlo, ou seja, perspectivas sérias de desastre: um auditório demasiado vasto, dois oradores que se prepararam separadamente e não se encontraram, para um vago acertar de agulhas, senão duas vezes, um nervosismo paralisante da minha parte.

Sei que os meus leitores não poderão ir. (Podendo, é claro, serão muito bem-vindos).
Mas, se entre eles houver crentes, por favor: às dez e meia enderecem uma oração por mim.

Que às dez e meia se lembrem de que, perto ou longe, alguém - eu próprio - estará sofrendo; com papéis a cair sucessivamente ao chão; a beber goladas de água para humedecer os lábios secos e a suar em pleno Inverno, que às dez e meia, repito, se lembrem disso, será já um gesto bonito e suficiente por parte dos não-crentes.

Bebo a vossa energia. A todos agradeço.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

SARTRE: A MÁ-FÉ

Tinha o livro na estante, fui buscá-lo. Está velho, uma capa de cantos dobrados, as suas páginas, com manchas de humidade, muito sublinhadas, com anotações que preenchem, a lápis, as margens largas, bilhetes de cinema entre as folhas, marcando uma certa passagem, chamando a atenção para um determinado capítulo. Trata-se de L'Être et le Néant, de Jean-Paul Sartre, o pensador que desdenhosamente entretanto esqueci, como se não tivesse sido o responsável por me ter arrastado para a filosofia.

Deste livro, retenho e traduzo um trecho extraordinário. Querem ouvir?

«Eis, por exemplo, uma mulher que se rendeu a um primeiro encontro. Ela sabe muito bem as intenções que o homem que lhe fala alimenta a seu respeito. Sabe também que terá, mais cedo ou mais tarde, de tomar uma decisão. Mas não quer sentir-lhe a urgência: agarra-se unicamente ao que oferece, de respeitável e discreta, a atitude do seu amigo. Não capta essa conduta como uma tentativa para realizar o que se designa por "primeiras abordagens", quer dizer, não quer ver as possibilidades de desenvolvimento temporal que essa conduta apresenta: limita esse comportamento ao que ele é no presente, não quer ler nas frases que lhe dirigem nada senão o seu sentido explícito; se lhe dizem: "Admiro-a tanto", desarma esta frase do seu subentendido sexual; liga, aos discursos e à conduta do seu interlocutor, significações imediatas, que encara como qualidades objectivas. O homem que lhe fala parece-lhe sincero e respeitoso tal como a mesa é redonda ou
quadrada, como a tinta da parede é azul ou cinzenta. E estas qualidades, assim atadas à pessoa que ela escuta, fixaram-se
[...] É porque não tem consciência do que pretende: é profundamente sensível ao desejo que inspira, mas o desejo cru e nu humilhá-la-ia e far-lhe-ia horror. No entanto, também não encontraria qualquer charme num respeito que fosse unicamente respeito. É preciso, para a satisfazer, um sentimento que se dirige inteiramente à sua pessoa, quer dizer, à sua liberdade plena, e que seja reconhecimento da sua liberdade. Mas é preciso, ao mesmo tempo, que esse sentimento seja, inteiramente, desejo, quer dizer, que se dirija ao seu corpo enquanto objecto. [...] recusa ver o desejo como ele é, não lhe dá sequer nome, não o reconhece senão na medida em que este se transcende em direcção à admiração, à estima, ao respeito e onde se absorve inteiramente nas formas mais elevadas que produz, ao ponto de não perceber nele mais do que uma espécie de calor e densidade. Mas eis que lhe seguram a mão. Este acto do interlocutor arrisca-se a mudar a situação, apelando para uma decisão imediata: deixar estar a mão, é consentir no flirt, é comprometer-se. Retirá-la, é romper esta harmonia instável que provoca o charme do momento. Há que fazer recuar, para o mais longe possível, o instante da decisão. Sabe-se o que se produz então: a jovem deixa ficar a sua mão, mas não se apercebe disso. Não se apercebe porque acontece, por acaso, que é, nesse momento, toda ela espírito. Conduz o seu interlocutor às regiões mais elevadas da especulação sentimental, fala da vida, fala da sua vida, mostra-se sob o seu aspecto essencial: uma pessoa, uma consciência. E durante esse tempo, o divórcio do corpo e do espírito cumpriu-se: a mão repousa inerte entre as mãos quentes do seu amigo: nem consentindo, nem resistindo - uma coisa. Diremos que esta mulher está de má-fé

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

DOSTOIEVSKI, ZWEIG: SOBRE O VÍCIO DO JOGO

Com a intensidade de um destino trágico, o vício do jogo, transposto para a Literatura ou para o cinema, oferece-nos um tema sublime, onde se embatem a liberdade e o determinismo, o modo como se joga o amor, a família, o respeito, a vida inteira, por um irresistível e maligno momento de prazer e esperança. Posso parecer cínico. Mas o autor que aborda o jogo tem à sua mão, no carácter daquele que o vício consome e na relação deste com o demónio, um concentrado das fragilidades e forças da psicologia humana.

Lembro-me de dois livros incontornáveis. Um é, precisamente, O Jogador, de Dostoievski. Nesta novela com qualquer coisa de autobiográfico - aquilo a que chamaríamos semi-autobiográfica - o que se nos expõe é, em toda a sua crueza, o processo de destruição de uma pessoa: em torno de uma certa fortuna que se dissipa, todas as personagens se transformam, todas as vidas mudam e nada será como dantes. Ivanóvitch, um preceptor de espírito são e forte, envolvido sem querer no jogo, acabará por se deixar absorver num presente fátuo, ganhando e perdendo, quem sabe se incapaz de futuro.

O Jogador remete-me para 24 Horas na Vida de uma Mulher: Stefan Zweig, que foi, sobretudo, um extraordinário biógrafo - nunca esquecerei a sua Maria Antonieta, ou o seu José Fouché, sobretudo este último, que li na adolescência mas gostaria de reencontrar - , tentou, com aquela novela, descer ao mais insondável e perturbador da alma humana. Sentimos a presença subliminar da teoria de Freud, ensaiando compreender (como, aliás, em Dostoievski, que constantemente prenuncia e antecipa a psicanálise).

Curiosamente, do livro de Zweig salta uma cena que me assombra, e que não sei se está no texto e a «li», ou se a «vi» no filme que adaptou a história. Mais perturbador: nem sei se vi tal filme, ou se a minha mãe me terá descrito essa cena. Ou se, simplesmente, a imaginei.
Mas tudo se concentraria numa mesa de jogo onde, sobre o pano verde, não vemos senão as mãos, pares de mãos presas de uma vitalidade doentia, expressando nos seus movimentos bruscos, um carácter, um medo, a avareza, a vitória. Dedos aduncos recolhendo moedas, ou dedos tremendo no baixar desalentado das suas cartas.

E, se a cena existe, impressiona-me a perspicácia de Zweig: como no cruzar tenso de mãos sobre um circo de vida e de morte, dispõe um jogo de sentimentos anónimos, inesquecíveis fantasmas do desespero.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

PROUST & SAINTE-BEUVE

José Saramago sustentava não ser possível, em rigor, separar o narrador e o autor de um romance. Não faria sequer sentido, do seu ponto de vista, o conceito de «narrador» como uma entidade própria, autónoma, inconfundível. Era uma ironia? Não me parece. Sob a capa de uma falsa humildade, insistindo sempre na tecla do auto-didactismo de homem que se fizera a pulso, o Nobel português sempre tratou, por outro lado, de que lhe levassem muito a sério a sabedoria. E, portanto, com alguma simplicidade, afirmava que todo e qualquer romance vem sustentado, em última análise, pela omnipresença do autor. O narrador, por muito que o oculte e disfarce, não é senão uma forma (um avatar?) do homem concreto que concretamente escreveu aquela obra.

Esta visão, tão cara a Saramago, que julgava ter descoberto a pólvora, é antiga. Numa diferente formulação, Sainte-Beuve não pressupunha outra coisa, quando reduzia a obra ao seu autor. O seu método crítico consistia nisto: em descobrir o homem por detrás do romance; em pesquisar minuciosamente o senhor escritor, nos diversos ângulos da sua biografia:

«Enquanto não dirigimos a um autor um certo número de questões e não lhes respondemos, ainda que para nós mesmos e em voz baixa, não estamos seguros de o captar inteiramente, ainda que essas questões pareçam estrangeiras à natureza dos seus escritos: Que pensava ele da religião? Como era afectado pelo espectáculo da natureza? Como se comportava em relação às mulheres, em relação ao dinheiro? Era rico, pobre; qual era o seu regime, a sua maneira quotidiana de viver? Qual era o seu vício ou a sua fraqueza? Nenhuma das respostas a estas questões é indiferente para julgar o autor de um livro ou o próprio livro, se esse livro não é um tratado de geometria pura, principalmente se é uma obra literária, quer dizer, onde ele entra totalmente.»

Numa das suas obras mais curiosas e menos conhecidas (não está, por exemplo, traduzida para português), e que é um misto de ensaio, rascunho, leitura, memória, discussão, Marcel Proust contesta metodicamente tal posição. O livro chama-se, de resto, Contre Sainte-Beuve. A sua intenção não poderia ser mais clara.

Em primeiro lugar, segundo Proust, o escritor concreto, o autor, esse é que nada é. Posso somar notas biográficas, investigar-lhe o passado, inquirir os vizinhos, as contas, interrogar a sua mulher ou o seu confessor, passar em revista a ficha clínica, que não obterei senão um indivíduo social, semelhante aos da sua cultura ou aos do seu grupo. Saber que Proust era homossexual ou sofria de asma retira ou acrescenta alguma qualidade fundamental à crítica ou à interpretação da sua obra?

O espírito que interessa, o eu que conta, não se concentra na pessoa que se passeia pelo mundo, no indivíduo concreto - com dores de dentes, melancolias várias, num quarto forrado contra o ruído da rua... -, que escreveu um certo romance. Revela-se unicamente na obra. O único Marcel que nos interessa, ao longo de Em Busca do Tempo Perdido, é precisamente Marcel-narrador, esse que vai relembrando os diferentes momentos vividos na sua infância, na sua adolescência, na juventude, na maturidade e na velhice. E quem será, de facto, esse «Marcel»? O próprio Proust? Até certo ponto, sem dúvida, na medida em que é na sua experiência pessoal que o escritor se baseia, mas só até certo ponto: nas semelhanças e diferenças entre «Marcel» e Marcel Proust, no que neles coincida ou em tudo o que radicalmente os distingue, não é a luz de Proust que deve sobressair e iluminar o que lemos; não é a voz de Proust que devemos constantemente subentender: mas esta outra voz inventada, esta personagem que fala connosco, que nos guia e, apesar de fictícia, ganhou uma realidade com dimensões e peso próprios.

Sob «Marcel» está Marcel Proust? Sim. E que me interessa isso, a mim, leitor?

domingo, 7 de novembro de 2010

GABRIEL GARCIA MARQUEZ: CEM ANOS DE SOLIDÃO

Quando soubemos que o Prémio Nobel tinha sido atribuído a Vargas Llosa, meu irmão teve um desabafo:
«A Academia mudou completamente os seus critérios. O Garcia Márquez deve estar a roer-se de inveja!»
«Porquê?», retorqui-lhe. «O Garcia Márquez já tem o Nobel».
«Não tem».
«Tem».
«Não tem».
«Tem».
Fomos verificar. Tinha. Recebido em 1982.

Não reproduzo este diálogo, naturalmente, para dar conta de uma pequena vitória minha sobre o meu irmão, mas para captar uma certa imagem com que se ficou, talvez injustamente, de Gabriel Garcia Márquez: o escritor menor, que viveria à custa de uma única obra, ressentido e invejoso dos melhores, sempre à esquina, espreitando por um prémio que pudesse honrar-lhe a visão «politicamente correcta».

É evidente que, durante esta conversa, nunca saiu do meu horizonte um livro extraordinário: Cem Anos de Solidão. Pablo Neruda considerava-o a melhor obra de toda a Literatura Hispânica, depois do Quixote. Não sei. Sei que, no tempo em que o li, então recém-chegado de Moçambique, me prendeu como, até ao momento, nenhum outro o conseguira. (Ainda não tinha descoberto Em Busca do Tempo Perdido). O chamado realismo mágico, com o qual eu não estava nada familiarizado, surpreendeu-me como se de facto, durante um sonho, me perdesse e não conseguisse dar com o caminho de saída para o acordar, ou se, numa reunião sindical, uma mulher, subitamente, ascendesse aos céus.

Teria pouco mais de dezoito anos. Não fiquei aterrado pela extensão do romance e, para dizer a verdade, não tive especiais problemas com a árvore genealógica da família iniciada por José Arcadia Buendi e Úrsula Iguarán, que é um dos problemas vulgarmente apontados à história. Demasiadas personagens, algumas com nomes similares, excesso de laços. Não é verdade. Ou não tem a menor importância, porque, em cada momento, cada personagem e cada acção valem pela sua contribuição para o todo - quase como veios autónomos, interessantes por si mesmos.

De alguma forma, toda a vida se concentra naquele universo palpitante, em que as acções decisivas das pessoas pedem para ser julgadas em função de critérios muito humanos e flexíveis, e não de uma moral rígida, por onde escapulisse o que de mais autêntico, contraditório e profundo existe na história.

Possivelmente, quem leu Cem Anos de Solidão não tornará a lê-lo. Mas, entretanto, tal única leitura pode ser vivida como um momento que desequilibra a vida do leitor.

Não há muitos outros livros - Em Busca do Tempo Perdido é o primeiro dessa categoria restrita - em que o lugar descrito exista assim tão plenamente. Macondo é magicamente real. Tudo o que ali se faz ou diz é vívido, palpável, cheirável. Tornamo-nos vizinhos, amantes, amigos daqueles dramáticos sujeitos. Interessamo-nos pelos rumores que circulam, como aconteceria relativamente a um familiar ou a um vizinho com quem nos cruzávamos diariamente. E quando chegamos ao fim, não sentimos ter chegado ao fim: ficamos com a vaga sensação de que, no dia seguinte, aquelas pessoas estarão ali, na vila em que, de algum modo, habitamos com elas.

sábado, 6 de novembro de 2010

IRRITANTE HIPÉRBOLE

O Bom Inverno, de João Tordo, traz agora uma cinta que apresenta o autor como a maior revelação das letras portuguesas do nosso século. [Qual é o nosso século?]

Aprecio João Tordo. Alguns dos posts que publiquei são, a esse respeito, perfeitamente inequívocos.
Não seria justo para o autor que estas palavras negras sobre uma cintazinha branca me levassem a criar algum tipo de preconceito contra ele.

É muito irritante. Demasiado arrogante. Mas saibamos apagá-las da memória. E acreditemos que João Tordo nada tem que ver com uma publicidade tão absurda. (Se calhar, é a citação de algum tonto! Post-scriptum: é-o, de facto. Dei-me, já posteriormente, ao trabalho de ir verificar melhor...)

Desculpem o desabafo. Por favor, senhoras e senhores, voltem às vossas leituras.

Obrigado

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

KNUT HAMSUN: PAN

Encontrei uma primeira referência a Pan num apetitoso livro sobre livros chamado Bibliotecas Cheias de Fantasmas. Terei porventura pensado que se tratava de «Peter Pan», de J. M. Barrie. Quando
percebi que se tratava de outra coisa, uma das obras mais queridas do escritor norueguês Knut Hamsun, prémio Nobel da literatura em 1920, senti despertar aquele particular entusiasmo que sobre nós exercem certos objectos de culto. Procurei Pan pelas livrarias, mesmo numa tradução inglesa. E, evidentemente, não o achei.

Por uma mera coincidência, poucos meses mais tarde deparei-me, bruscamente, com o mesmo Pan. Em português, lançado pela Cavalo de Ferro, já em 2010: uma capa muito bela - a reprodução de uma pintura, de 1865, de Berthe Morisot. O verde impressionista de uma floresta norueguesa, indefinidamente salpicada pelo amarelo de certas flores ou o acinzentado de troncos de árvores.

Pan é a história de um sentimento. Simplifico, talvez: mas a personagem principal, mais do que o Tenente Thomas Glahn, é o peculiar sentimento que o atrai para Edwarda. Tudo o que vemos acontecer não é senão a forma como tal sentimento ganha consciência de si, se afirma, se frustra, se nega, reinicia, se nega de novo. Não há outra trama: toda a narração se confunde com a da série de metamorfoses desta atracção do Tenente por uma rapariga (uma mulher, afinal) que ele não consegue compreender nem dominar; que às vezes parece corresponder-lhe e amá-lo também, mas subitamente lhe escapa e o despreza. Que regressa quando a dava por perdida, que o chama de novo, para, uma vez mais, o agredir e rebaixar. Pan é, pois, a história desta indecisão e desta incompreensão, desta contínua tensão que, no limite, funciona como um jogo - entre querer e não querer, como se todo o amor precisasse de ser posto à prova: ou como se desejássemos somente enquanto o objecto do nosso desejo nos é inacessível e, no momento em que sentimos que também ele nos deseja, principiássemos a querê-lo menos, a desinteressar-nos, a afastar-nos...

Mas há um outro aspecto que o romance de Hamsun capta perfeitamente. O objecto do amor é, até certo ponto, transferível. Em face do seu sentimento ingrato e difícil por Edwarda, que o ignora ou repudia, o Tenente pode amar outras mulheres. Até certo ponto. Para provocar ciúmes, ou para preencher o seu mal-estar. Ou enganando-se a si mesmo. Possivelmente, só mesmo para se enganar a si mesmo.

O que surpreende nesta narrativa, relativamente curta mas muito densa, é o modo como conjuga artisticamente os opostos: se há uma exposição muito «realista» dos sentimentos, de algum modo psicanalítica, esta dá-se no interior de um elemento quase «onírico», irrealista e misterioso; as relações são sempre enigmáticas, as acções e as reacções das personagens constituem-se numa imprevisibilidade incómoda, sinistra, mantendo aquele tom de estranheza em que um Kafka encontrará a sua voz. Não falo de Kafka por acidente. Mas porque se escreve, na badana em que nos é sumariamente apresentado Hamsun: «Mann, Gide, Gorky, Kafka e Hemingway contaram-se entre os seus incondicionais admiradores». Lendo-se este livro, percebe-se porquê.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

GONÇALO M. TAVARES: UMA VIAGEM À ÍNDIA


A linguagem é, para já, um mero instrumento. Aprendemos a utilizá-la para nomear os objectos ausentes, para os descrever, para narrar o que aconteceu outrora, ou o que poderá acontecer. (Ou, redundantemente, o que está a acontecer...)

Mas é possível cairmos no interior da linguagem. Absorvidos por ela, como por um profundo buraco negro, descobrimos, no seu interior, a possibilidade de se criar um mundo que só a ela própria pertence, e que pouco tem que ver com o mundo que ficou lá fora. (Claro, também eu duvido que no interior de um buraco negro se possa criar seja o que for. É, sem dúvida, uma analogia claudicante...). Não só a linguagem, nesse momento, deixa de «representar» o exterior, como nem sequer o tem como vaga referência. Tal como a música, a que podemos acrescentar uma «letra», mas tem, no entanto, um sentido próprio, independente dessa letra e do que as palavras lhe sobreponham, também a linguagem é capaz de criar música, pôr-se face a face consigo, testar os seus limites, subvertê-los. Descobrir um sentido, uma plenitude, em si e a partir de si. E, na minha experiência quase autodidáctica da questão, isto é a poesia.

Uma Viagem à Índia apresenta-se como sendo um poema. Não tenho dúvida de que é, antes de mais, um romance. A história de uma personagem - Bloom - que demanda a Índia, em busca de uma mulher e de sabedoria. Poderia ser um romance que se quisesse assumir, num gesto irónico e paródico, nas formas da poesia. Mas tratar-se-á disso? Ou de outra coisa, um poema, efectivamente, uma experiência de criação a partir do Verbo, à imagem do Génesis, Canto, Revelação?

A resposta a essa pergunta principia no momento em que nos apercebemos de que o texto em causa não poderia ter sido escrito de outro modo. Com palavras diferentes das que são usadas. Que história ali fica, se a despojamos da linguagem em que ela se oferece? Poderíamos transpô-la para outro registo, para outro tipo de discurso, resumi-la, abreviá-la? «Tendo a Índia como derradeiro objectivo, Bloom encontra-se com três homens, um pai e seus dois filhos, que o querem assaltar...». Não é possível, perde-se o essencial: não há nada para contar fora das palavras com que Gonçalo M. Tavares reinventa Bloom, e vai inventando as peripécias de que se faz a sua viagem impossível. Tudo, ali, é literário: Lisboa, Londres ou Paris, sobretudo a Paris que vemos aparecer diante de nós, não são as cidades geograficamente reais, mas um concentrado de sonho e mito: «Ah! Paris! Em nenhuma cidade se está mais perto de Paris que em Paris. Daí a sua grandeza.»

Em um sentido muito similar àquele em que Walter Pater proclamava que toda a Arte aspira à condição de música, poderíamos dizer que, desde o início, toda a obra de Gonçalo M. Tavares aspira à condição de poesia. São já poemas os seus romances, em que tudo se transformaria se mudasse de habitat, quer dizer, se fosse arrancado à sua forma de exprimir, ao modo como a história é contada. Se o desligássemos do acto linguístico de contar. A linguagem nunca é pretexto: porventura, a matéria sim, essa será pretexto para o exercício da linguagem.

Obviamente, Uma Viagem à Índia é um texto que não deixa pedra sobre pedra. Trata-se de sabotar todos os lugares e livros e categorias que nos habituámos a frequentar tranquila e rotineiramente, instaurando-se um maravilhoso universo paralelo, atemporal, meta-literário, onde improváveis sequências de sentido nos surpreendem continuamente. É uma odisseia. Mas uma odisseia totalmente humana: porque, e isso nos é lembrado e repetido, a aventura narrada não diz respeito aos deuses; o mundo dos deuses fica longe e longe deve permanecer. Aqui, fala-se do que ocorre ao nível do olhar humano. O próprio Destino não é senão uma paródia. Falar-se-á em profecia ou em adivinhação, mas, em última análise, nada há para se revelar; o misticismo é um logro; o sonho da Índia acabou sendo esvaziado pelo Ocidente.

Numa entrevista concedida ao JL, Gonçalo M. Tavares explicava que, quando se é dextro, é preciso tentar escrever com a mão esquerda, ou seja, recusar o que se aprendeu a fazer demasiado habilmente. É preciso experimentar o que se não experimentou. Bem ou mal, só isso vale a pena. Por isso, Uma Viagem à Índia é tudo o que não esperávamos e, onde quer que o esperássemos, se recusa a comparecer. Romance e poesia, mito e filosofia, revisitação e despedida, reconhecimento e exploração de desconhecidos percursos no meio dos que julgávamos conhecer, habilidade e desconstrução de toda a habilidade em que assentáramos, aventura e desventura, é uma obra daquelas que se percebe que algo marcam, algo apontam, algo trazem. Se não a Índia, a impossibilidade da Índia. Se não o que a Índia é, talvez a ideia do que já não pode ser.