sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

e.e.cummings: a poesia criando a sua regra


No texto em que descrevia o que fora a nossa sessão de homenagem a Tolstoi, o jovem João d'Eça aboliu as letras maiúsculas. Num comentário ao post, dizia-se que tal se deveria à pressa, ou à influência de valter hugo mãe.

Posso escrever unicamente com minúsculas. Na poesia, então, a tendência generaliza-se; é muito difícil resistir. Mas parece-me que o facto significa, antes de mais, que seguimos uma moda. Podemos fazê-lo se ela nos for útil, enquanto o é, na medida em que o seja. Mas, dois pormenores: 1: não vale a pena reivindicar o acto como um gesto de originalidade e rebelião, porque se há coisa que deixou de ser é um gesto de originalidade e rebelião. 2: não vale a pena encontrar-lhe uma fundamentação teórica, como seja a pretensa «democratização» das palavras, porque as palavras não têm necessidade de ser cidadãs de uma qualquer democracia, tanto mais que as empregamos para exprimir diferenças, mais do que uma sonhada igualdade entre elas. [Escrito pós-comentário de Mariana: Ou, pelo menos, não vale a pena confiar excessivamente na tentativa de teorização fácil que tende também a impor-se...]

Dito isto, falemos daquele poeta em quem essa opção foi verdadeiramente original, um gesto de rebeldia e subversão, de modo a desconstruir a forma gramatical a priori, o modelo convencional da fabricação da frase, ou do verso, ou da poesia: e.e.cummings.

Nos poemas de e.e.cummings tudo é possível: um pontuação que interrompe abrupta e erradamente, uma exaltante liberdade no uso dos meios da escrita, ligações e intervalos estranhos e inovadores. Mas basta prestarmos atenção ao seu lindíssimo poema, na lindíssima tradução de Augusto de Campos, que se transformou numa lindíssima balada, cantada na inesperada voz de Zeca Baleiro - apresentada no meu post anterior - para percebermos que, na poesia de cummings, se trata de uma busca muito séria e expressiva de sentido e de beleza. E essa busca, esse sentido, essa beleza justificam e compreendem que tenha de se escavar a norma, subvertendo-a, para dela extrair a pura maravilha.

Os que vieram depois, se quiserem, continuem por aí. Mas não se esqueçam de que, agora, é fácil. Não se esqueçam de que, para serem «originais» por esse caminho, chegaram talvez demasiado tarde. E de que não há muitos e.e. cummings.

3 comentários:

Mariana disse...

Prezado José Pacheco,

Ao ler seu texto, esbarrei na frase "não vale a pena encontrar-lhe uma fundamentação teórica", e fiquei aqui me perguntando por que não valeria...

Por outro lado, as letras minúsculas são um dos tantos recursos expressivos, se assim se pode chamá-los, da poesia moderna, junto com o verso livre, o verso branco e a pontuação dissonante. Claro que tudo isso, assim como ocorreu com o soneto, pode virar modismo, mas são recursos que tiveram seus desbravadores. A tarefa de quem vem depois deles nunca é confortável (e bastante tinta já correu sobre isso - as angústias da influência dos blomms da vida). No Brasil, por exemplo, ao se falar em verso livre, o nome que vem de imediato é Manuel Bandeira, mas já havia gente antes dele fazendo isso: ele apenas deu ao verso livre uma expressão requintada não lograda antes.

Quando encontro um poema todo em minúsculas, e quando se trata de um bom poema, eu sinto algo muito interessante: é que as letras minúsculas tiram a importância das coisas (assim como as maiúsculas as acentuam); e quando isso acontece num bom poema, é uma surpresa a mais, pois se há algo que de fato possa tirar a importância das coisas, ou dar-lhes outra dimensão, esse algo é a arte.

No mais, me desculpa se me intrometo em assunto que me diz respeito mais pelo prazer da leitura que pelo conhecimento teórico, mas o leitor da poesia moderna é inevitavelmente afetado por ela. Nesse sentido, aquele comentário que você fez no poema do Rilke no meu blog ficou ressoando em mim, pois eu havia visto outra coisa no poema (que não vem ao caso no contexto presente), e você viu a questão da música, e eu fiquei com aquilo, tentando entender, e continuo tentando...

josépacheco disse...

Mariana tem, obviamente, toda a razão. Eu questionava-me porque penso que, em geral (pelo menos em Portugal, tanto quanto me parece) a "teorização" é um pretexto, é um alibi. Escrevem assim porque é engraçado e todos os fazem - e engendra-se uma justificação pobre.
Mas estou inteiramente de acordo em que é mais um recurso da poesia. (Não quero passar por incoerente: em alguns dos textos que escrevo, por exemplo em certos poemas, quando, digamos, sinto que tem de ser - desculpe se pareço pretensioso - não há senão minúsculas.
Agradeço muito o que a Mariana fez. Um blogue pode ser também discussão. Troca de ideias. Iluminação de novidade. Que bom.

Mariana disse...

Prezado José Pacheco: só agora vi a fala inserida aludindo ao meu comentário "[Escrito pós-comentário de Mariana...]" Obrigada pela menção.

E já que o assunto é comentário, tive a "impressão" de, inadvertidamente, ter apagado um comentário seu, na quinta-feira. É tudo muito confuso, pois na medida em que os comentários chegam, vou publicando e descartando da caixa de entrada. Aí que publiquei três, mas no ato de descartar tive a impressão de ter enxergado o número quatro. Como ando bem cansada, a chance de eu estar me confundido, em qualquer direção, é bem grande. De todo modo, supondo meu descuido, peço de antemão desculpas. Acho os comentários fundamentais à dinâmica do blog, e são sempre bem-vindos.