sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

BORGES E A CORAGEM DE CONFESSÁ-LO

«Nunca esquecerei a minha primeira leitura de Kafka numa certa publicação profissionalmente moderna de 1917. Os seus redactores - que nem sempre careciam de talento - haviam-se dedicado a inventar a falta de pontuação, a falta de maiúsculas, a alarmante simulação de metáforas, o abuso de palavras compostas e outras tarefas próprias daquela juventude e, provavelmente, de todas as juventudes. Entre tanto estrépito impresso, uma narrativa que tinha a assinatura de Franz Kafka pareceu-me, apesar da minha docilidade de jovem leitor, inexplicavelmente insípida. Ao fim de todos estes anos, atrevo-me a confessar a minha imperdoável insensibilidade literária: passei diante da revelação e não dei por ela

Jorge Luís Borges [Introdução a O Abutre, de F. Kafka]

3 comentários:

Mariana disse...

"a minha imperdoável insensibilidade literária: passei diante da revelação e não dei por ela.»

Todo mundo foi jovem um dia. Mas depois ele reparou isso, escrevendo o ensaio que se tornou obrigatório, "Kafka e seus precursores". Mas a revelação de Borges sobre Kafka que mais me assustou foi outra: ele declarou, não sei mais onde, que não conseguia imaginar o Universo sem "O processo". Como faz tempo que li, haveria chance de a memória estar me traindo. Mas não: eu li isso.

josépacheco disse...

Mas a Mariana não tem também, muitas vezes, a mesma sensação em relação a várias obras e autores? Não imagino de maneira nenhuma o Universo sem Em Busca do Tempo Perdido, por exemplo. Não o imagino sem Dostoievski. É estranho - porque são, de algum modo, «objectos» muito redcentes na História da Humanidade. (Não sei se interpretei bem o sentido em que a Mariana diz que, para Borges, não é concebível o Universo sem O Processo.

Mariana disse...

Não consigo conceber o Universo sem Bob Dylan... rsrs (vou responder seu comentário por lá, a única coisa que posso adiantar é que eu achei muito legal, e é claro que há mil coisas a falar).

Sem Dostoievski, nem pensar. E não abro mão do Joyce, do Flaubert nem do próprio Borges. Acho que o que me impressionou foi a ousadia da afirmação, a eleição sem titubeio de uma obra alçada, com tal juízo, à categoria de imprescindível. Seria "O processo" imprescindível? Para qual "recorte" da cultura? Para aquele a que pertenço, considero que sim. Mas o Universo é mais amplo que este ou aquele recorte da cultura. Acho que foi isso que me assombrou. Queria muito encontrar de novo onde o Borges falou isso, para dirimir essas dúvidas.