domingo, 2 de janeiro de 2011

ROBERT LOUIS STEVENSON: O ESTRANHO CASO DO DR. JECKYLL E DE MR. HYDE


Tenho saudades do teu pendor ensaístico, disseram-me por estes dias. Dos textos que escrevias sobre a tua intimidade com certos livros. Desses posts que nos mostravam como te demoraras numa página, como te riras com uma frase, como amaras uma personagem. O teu blogue está a tornar-se, de algum modo, num catálogo. Vá! Regressa às origens.

O Profissão: Leitor deveria ser visto como um poliedro: algumas vezes citando, outras ensaiando; em certos momentos, se calhar, catalogando - do mesmo modo que ora visita a filosofia, ora a poesia, ora o romance: que interessa? O meu humor não é sempre o mesmo, nem o que me apetece fazer se mantém fixo num ponto ou se move sob uma linha contínua; talvez isso justifique o ajustamento e o reajustamento de ângulos que agradem mais a este leitor e menos àquele. Mas, posta a justificação de mau pagador, há que acrescentar que compreendo a sugestão. O «ensaio», neste sentido vago, de passeio do «flâneur», que nada guia senão o amor pelas páginas lidas, é a natureza primeira deste blogue. De facto.

E isto leva-me a um livro estranho, que li há já muitos anos: O Estranho Caso do Dr. Jeckyll e Mr. Hyde. Eu era jovem, a vida corria-me tranquilamente. Não conhecera o amor, porque as raparigas me aterravam. Mas, por isso mesmo, também não experimentara o sofrimento das paixões não correspondidas. Não tinha tido, portanto, a experiência, que o amor mostra, de me dividir, de ser duas pessoas: o homem feliz e em paz com a sua amada, e aquele que, na ausência, ou no ciúme, vê crescer em si a impensável monstruosidade.

Esse livro menor - ou frequentemente considerado menor - foi, então, a minha primeira visão da duplicidade humana no seu extremo: e ficou tão fundamente cravado em mim que depois, quando, mais tarde, nos tormentos das paixões que vivi, me tornava contrário a mim próprio, numa espécie de luta interna entre o bem e o mal, o querer e o não querer sofrer mais, a esperança e o desespero, o perdão e o ódio, a euforia e a depressão, a metáfora que encontrava para ilustrar a dupla personalidade era, frequentemente, a metamorfose do Dr. Jeckyll em Mr. Hyde.

Nabokov, num artigo que vim de reler, lembra que Hyde, o lado mau, «nunca perde o desejo de regressar à personalidade de Jeckyll». E esse aspecto, afirma, é o mais significativo, porque nos lembra que há um laço profundo entre ambas as personalidades, uma necessidade, em cada uma delas, de se completar na outra - e de retornar à outra. Poderíamos pensar, pois, que mais do que uma autêntica metamorfose, o que ocorre é, em Hyde, a «concentração» (e o termo é de Nabokov) do mal que já existia em Jeckyll. Não há homens bons, não há homens maus: ainda que nunca haja a oportunidade de se confirmar, todo o homem bom é um malvado em potência. Ou, na versão optimista, em que às vezes creio, todo o malvado é um bom homem em potência.

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