segunda-feira, 28 de março de 2011

RAYMOND CARVER: CATEDRAL

1.

Em literatura, há lugar para tudo. Diria que um escritor tem o dever de exigir, de si próprio, e sem cedências, a qualidade máxima de que seja capaz. [Soa demasiado pomposo, reconheço, mas opto por deixar ficar o que entendo como imperativo categórico do escritor]. Quanto à forma ou ao género como essa qualidade se realiza, são praticamente infinitos; e cada um de nós,

leitores, pode fazer as suas escolhas, porque dificilmente os apreciaríamos todos: Eça ou Camilo? Tordo ou Peixoto? [O exemplo é imperfeito: gosto de Eça e de Camilo, de Tordo e de Peixoto: mas trata-se de entender o conceito...]


2.

Pessoalmente, sou sensível ao trabalho da linguagem. É o que me faz gozar tanto a poesia como a prosa. Mas há autores cujo texto procura, pelo contrário, despojar-se de toda a retórica: o que escrevem é despido, seco, mas não necessariamente menos artístico.

3.

Do meu ponto de vista, produzir um conto ou um romance que mereçam ser lidos apesar da depuração a que os submetam é, talvez, até mais difícil. Raymond Carver constrói contos, como diz o próprio, «sobre lugares comuns» e, pior (dir-se-ia), «usando lugares comuns». Percebo-lhe a afirmação: os seus contos são, de algum modo, estudos do quotidiano; os ingredientes são os nossos objectos, por exemplo esta caneta com que agora escrevo nas costas do enunciado de um teste de filosofia. É o sentido em que Tchekhov dizia: Olho para um cinzeiro e, se quiser, tenho pronto, pouco tempo depois, um conto chamado O Cinzeiro.

4.

A perspicácia de Carver é preciosa: as coisas simples, as casas comuns («lugares» comuns), o frigorífico, o sofá, a televisão tornam-se-nos perfeitamente nítidos. E as personagens? Casais, ou vendedoras de vitaminas, ou desempregados, ou alcoólicos em desesperada luta contra o seu vício. Na descrição dos gestos, ou dos hábitos e tiques - no fundo, lugares comuns comportamentais -, há sempre algo que provoca um reconhecimento imediato: eu fiz ou faria precisamente isto; ou alguém que conheço, ou alguém que costumo ver. E os diálogos são imperdíveis. [Facto: os americanos fizeram-se mestres absolutos na expressão de uma oralidade corriqueira - falas feitas de interrupções, de repetições, banalidades].

5.

E, todavia, nada disto constitui toda a verdade: porque, sob essa aparência de familiaridade, como se no mero circuito do lugar comum, cada conto de Carver é a descoberta do incomum do lugar comum. Sem grandiloquência, numa escrita extremamente simples, Raymond Carver encontra, em cada caso, o elemento quase surrealista no quotidiano banal. O pavão; o negro acabado de chegar do Vietname, com a orelha de um vietcongue guardada, como troféu, num estojo; o homem que se apaixonou por uma limpa-chaminés e se tornou limpa-chaminés. O efeito é, de facto, de uma originalidade ímpar. Nem Tchekhov nem Hemingway - e em Carver há, evidentemente, qualquer coisa dos dois - são tão eficazes nesta espécie de enumeração do trivial, para, sob ele, acertar em sentimentos tão próximos, tão nossos, tão compreensíveis.

6.

O fim de cada um dos contos é, em geral, um anticlímax: uma poça de água que sobrou sobre o soalho, umas quantas penas de ave ou uma despedida. E até isso é novo - eu julgava que, em regra, um conto devia dirigir toda a sua energia para um final surpreendente. Em Carver, não senhor: e isso é absolutamente surpreendente.

2 comentários:

Laura Ferreira disse...

Concordo!

Numa de Letra disse...

Terminei-o recentemente:

http://numadeletra.com/11221.html

Gostei mas não me deslumbrei...