sexta-feira, 27 de maio de 2011

HANS BLUMENBERG: O RISO DA MULHER DE TRÁCIA


Escrevi, há dias, que Perelman, o humorista, é sem dúvida nenhuma mais engraçado do que o seu homónimo, o filósofo Perelman.
E, no entanto, sustento que o "amor pelo saber" é uma forma singular de humor. (Um "humor pelo saber", de certo modo). Como professor de filosofia, considero, portanto, que sou, em larga medida, um actor de stand-up comedy. É com ironia que o digo? Sim, porque nas aulas, às vezes (mesmo se raramente), também me sento.

À primeira vista, esta tese poderia ser entendida como uma diminuição da filosofia, reduzida, aí, a mera matéria risível. Acontece que, por um lado, de facto, ela foi sendo percepcionada ao longo do tempo como «matéria risível». O filósofo sempre teve um papel de bobo. [Nietzsche dixit]. Leio, neste momentos, entre todos os outros, já referidos, um livro da autoria de Hans Blumenberg, intitulado O Riso Da Mulher de Trácia. Lembram-se da mulher da Trácia, não é verdade? Aquela jovem «bonita e espirituosa» que teria troçado de Tales de Mileto, quando este, entretido a olhar para o céu, caiu num poço. Lembram-se da impiedosa frase da mulher de Trácia, não é verdade? Que Tales, como todos os que se dedicam ao estudo, «ao querer saber com toda a paixão das coisas do céu» deixava de ver «o que se encontrava mesmo diante do nariz e debaixo dos seus pés». Isto é, o livro de Blumenberg recorda-nos de um modo claríssimo até que ponto a origem histórica da filosofia se pode associar ao riso.

Mas não é só enquanto objecto de troça que podemos ligar os filósofos ao cómico. Os cínicos, Sócrates, mesmo Platão e Aristóteles, aparentemente tão sérios, David Hume (e os cépticos em geral), Schopenhauer ou Nietzsche são, todos eles, exemplos de homens cuja reflexão está carregada de ironia; até o sóbrio e neurótico Kant escreve um interessante comentário acerca do riso; e Bergson tem um livro integralmente consagrado ao tema, já para não falar do «riso filosófico», na expressão que Foucault emprega a propósito de um texto de Borges; no fundo, se todo o cómico tem que ver com algum tipo de engano, o filósofo é o desenganador máximo: dar a ver a ilusão é necessariamente uma operação cómica, que ridiculariza os que não vêem senão o visível. A Alegoria da Caverna é um exemplo dessa ironia em relação ao senso comum: aqueles que crêem que as sombras são a única realidade, porque nunca viram nada que não sombras, são escravos, mas escravos cómicos. Não trágicos mas, quando muito, tragicómicos.

O subtítulo da obra de Blumenberg é Uma Pré-história da Teoria: não de uma teoria em particular, mas da teoria enquanto tal, ou seja, do distanciamento que nos permite romper com a imediatez das nossas percepções - e é seguramente um dos livros em que me basearia para a minha tese de que, em filosofia, o cómico não é um elemento menor, nem diz respeito unicamente ao método, mas à própria coisa .

quinta-feira, 26 de maio de 2011

NAS MÃOS DOS LIVROS



Estou, novamente, numa verdadeira roda-viva de livros, deixando que eles tomem conta de mim, me violentem o espaço, me roubem o tempo, me assolem a tranquilidade.
Termino quase de ler HHhH. Faltam-me no entanto alguns capítulos.
Iniciei A Questão Finkler, de Howard Jacobson. Esperava muito, muito, muito deste romance, premiado e abundantemente referido, mas ainda não cheguei ao ponto em que começasse a depender dele, a não ser já capaz de o largar por uns minutos.
Entretanto, influenciado por uma amiga, comprei Ilha Teresa, de Richard Zimmler. (Essa amiga fez-me ler Por Favor Não Matem a Cotovia, entre outros, portanto, é claro, trata-se de uma influência a não ignorar). Sigo um pouco convincente primeiro capítulo. Por enquanto.
Entretanto, como não resisto às escolhas de Ricardo Araújo Pereira, rendi-me a um dos últimos livros publicados na sua colecção de humor: O Mundo Segundo Perelman. [E Perelman, o humorista, não o filósofo, é, pelo menos, muito mais engraçado do que o filósofo!]
Outra amiga emprestou-me O Cairo Novo, de Naguib Mahfouz. Está ali, sobre uma cadeira, a troçar de mim.
De vez em quando regresso a As Vantagens do Pessimismo, de Roger Scruton.
Certo romance policial de um autor que venho de descobrir, Lawrence Block, já tem senha e aguarda vez: O Ladrão que Estudava Espinosa.
De maneira que principio a sentir-me aflito. Sou como alguns fracos que dizem, das suas relações: As mulheres fazem de mim o que querem. No meu caso, são os livros. Usam-me, servem-se abusivamente de mim, esgotam-me. Gasto com eles o que não tenho. Mas que se há-de fazer? No fundo, é mesmo assim que gosto...

segunda-feira, 23 de maio de 2011

PHILIP ROTH: O COMPLEXO DE PORTNOY


Uma primeira ideia tem de se reconhecer, a propósito deste livro; não é com certeza uma ideia politicamente correcta, mas parece-me evidente: não se pode ridicularizar um judeu, a menos que seja um judeu a fazê-lo. [Relendo, descubro que o que torna esta afirmação «politicamente incorrecta» é uma ironia que, no entanto, não sei se é aqui evidente...]. Se o autor não fosse Philip Roth, tornava-se obrigatório acusá-lo de anti-semitismo. Mas alguém como Roth pode desenvolver o seu espírito crítico e o seu olhar demolidor em relação a uma cultura carregada de mitos e de preconceitos: como todas as culturas, de resto, com a diferença óbvia de que as outras não foram tão metodicamente perseguidas, descriminadas, atacadas.

Não gosto de todo o Philip Roth. Mas considero O Complexo de Pornoy e A Pastoral Americana dois livros maiores, absolutamente inesquecíveis.

Sobre O Complexo de Portnoy, aliás, há um outro pormenor, ainda, capaz de gerar uma certa propensão para que o amem mal. É um romance que toma por protagonista um jovem que encarna o lado menos amável - se não o mais odioso - da adolescência masculina: a curiosidade sexual vivida como algo de corrupto e sórdido, numa perpétua tensão entre a regra e a porcaria.

Aliás, se principiei por falar acerca da dimensão judaica presente no romance, e acerca da sua dimensão libidinal, é porque tudo nesta história se move sob o peso asfixiante da norma (ética, religiosa, familiar: é de judaísmo que se trata) que culpabiliza a consciência desse jovem, incapaz de controlar o seu impulso sexual. O «complexo» em causa é precisamente esse: o de se crescer na descoberta e na atracção, perante a culpa terrível de uma mãe castradora, personificação da estrita exigência de um Deus implacável.

Há, em Roth, um humor maldoso, uma ironia que se auto-destrói, a provocação de um riso interdito, em torno das referências típicas de um judaísmo contemporâneo, que tem como pólos a América do Norte e Israel, o psicanalista e o rabi, o sexo e a mãe, as amantes sucessivas ou a masturbação desde sempre versus os mandamentos de Deus. E nesta incapacidade de gestão se escreve um romance maldito, deliciosamente corrosivo e literariamente superior.

terça-feira, 17 de maio de 2011

LAURENT BINET: HHhH








É uma das minhas aquisições na feira do livro.

O título, impronunciável, é HHhH. [Como o lêem os meus leitores? «agá maiúsculo, agá maiúsculo, agá minúsculo, agá maiúsculo?»]; salva-o o subtítulo, que é o nome pelo qual sempre o podem pedir: Operação Antropóide. [«Salva-o» é força de expressão: o próprio narrador confessa que o editor discordava deste nome, que remeteria enganadoramente para uma certa ficção científica muito em voga: Ludlum, será...?]

Recebeu o Prémio Goncourt para 1º Romance 2010. Já me insurgi alhures contra esta tendência nefasta para se avaliar um 1º romance como... um 1º romance. [Não resisti ao piroso das reticências]. Como se em algum lugar estivesse determinado que um 1º romance tem direito a uma complacência especial, que, na verdade, o diminui. «É bom?»; «Sim. Para 1º romance». Sabemos de autores cuja primeira obra foi a melhor de todas, e que nunca mais, desde aí, conseguiram uma tão perfeita combinação de todos os ingredientes.

HHhH é um romance sobre o nazismo. Sobre Heydrich, uma espécie de demónio distinto com voz de falsete (a «besta loura»), e sobre o contexto social e histórico que lhe moldará o carácter e oferecerá as oportunidades de brilhar perversamente; sobre Himmler e sobre Hitler, naturalmente, de modo que ficamos a perceber o propósito dos H maiúsculos. Mas, também, e, a partir de certa altura principalmente acerca de Gabcik (que queria matar e acabou sendo morto); e sempre sobre o próprio narrador, que investiga e estuda minuciosamente, em Praga, os elementos para a redacção de um romance: este romance.

Portanto, eis talvez a questão decisiva da obra: em que medida se trata de um «romance» ou de uma descrição da «verdade histórica e biográfica» cruzando-se com a «verdade autobiográfica?» As namoradas de que fala ao leitor, os episódios pessoais que evoca num tom confessional, raiando o despudor, a intimidade da sua relação com a cidade de Praga (onde, sublinha uma nota na capa, o autor autêntico, Laurent Binet, efectivamente viveu) imprimem uma sensação de verosimilhança quase arrepiante.
E mesmo os erros, que não desaparecem do seu lugar: por exemplo, o narrador aceita precipitadamente uma informação e quando, mais tarde, se apercebe da sua imprecisão, rectifica-a páginas depois, ao invés de simplesmente suprimir o erro que expusera antes. [Aliás, ilustro o procedimento. Escrevi, uns parágrafos acima, que os «agás» do título são as iniciais de Heydrich, Himmler, Hitler. Leio no livro, na página 121, que HHhH alude, antes, a uma frase da SS: Himmlers Hirn heisst Heydrich, ou seja, «o cérebro de Himmler chama-se Heydrich». Mantenho o erro e a emenda...]

O eixo é, portanto, a ideia de um «pacto com o leitor». Como se fosse realmente hediondo transformar pessoas reais em personagens de ficção, imaginando diálogos possíveis mas não provados. É, neste sentido, um romance de uma perturbadora originalidade: sob as questões éticas e políticas acerca das quais reflecte a propósito do nazismo e do holocausto, ou da formação de personalidades vocacionadas para o mal, perpassam estas outras questões éticas e políticas sobre a relação entre o autor e o leitor.

Lê-se como um romance que se vai escrevendo sob os nossos olhos, sem rascunho, minando-se e sabotando-se a si mesmo, guiado pela ideia de um dever moral - o da verdade sem restrições - que, em última análise, não se compatibiliza com o trabalho da ficção e que, portanto, seria impossível a um romance.

sábado, 14 de maio de 2011

JOHN RUSKIN











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Há muito que procuro John Ruskin. Não há forma de o encontrar. Em português, até já tinha desistido de conseguir: não creio que o traduzissem; mas mesmo em inglês: os livreiros mais cultos desconhecem-lhe o nome, hesitam, pedem-me que repita, anotam, nunca voltam a entrar em contacto comigo.


Ruskin tem, para mim, dois fortíssimos polos de atracção. Por um lado, a influência que exerceu sobre Proust, que sabia inglês e o leu em inglês. A própria linguagem, requintada e minuciosa, mas também o poder de observação ou uma certa concepção estética dos lugares, que são, em conjunto, uma parte substancial da grandeza de Proust, encontram em Ruskin as suas premissas.

Por outro lado, obviamente, a ligação deste aos pré-rafaelitas, corrente e personalidades que redescobri recentemente, e não param de me surpreender e fascinar. (Leia-se, por exemplo, Adoecer, de Hélia Correia, já por mim comentado neste blogue). Ninguém como Ruskin, no seu tempo, os terá apreciado, compreendido, apoiado e ajudado a divulgar.


Ruskin era extremamente conservador. Talvez mais do que um conservador, um «reaccionário»: e, não obstante, a sua visão anti-progressista contém algo de profundamente exacto (meço com cuidado as minhas palavras) e de profundamente poético: veja-se um texto (a que chego através de uma citação em As Vantagens do Pessimismo, de Roger Scruton) em que Ruskin escreve sobre o que se perderia com o desenvolvimento do comboio e dos caminhos-de-ferro, esventrando, unindo e transformando radicalmente a terra tal como «a conhecemos», alterando e adulterando por completo as relações entre as pessoas (e, claro, as relações entre as pessoas e a terra), tornando o homem um ser móvel e desenraizado, em constante trânsito sobre o mundo.



Oh, eu sei o que se ganhou com o comboio. E com o avião, por exemplo. Todos o sabemos, de resto: o que me pergunto é se estamos conscientes do que perdemos. (E com o domínio do avião - lembrava-me ontem o meu primo, ao jantar - uma das coisas que perdemos quase definitvamente foi a viagem por mar: as demoradas travessias do oceano...)

Por mim, continuo procurando Ruskin; talvez venha a revelar-se-me uma profunda decepção. (Se chegar a encontrá-lo). Mas, possivelmente, só se o não merecer.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

https://www.facebook.com/#!/nadamaiseociumegilduarte

já agora, en passant, gostaria de lembrar que o «meu» próprio livro, Nada Mais e o Ciúme, está na feira do livro (pavilhão dos pequenos editores).

Quem tenha curiosidade pode, no facebook, visitar a página do romance. Aqui:

https://www.facebook.com/#!/nadamaiseociumegilduarte

terça-feira, 10 de maio de 2011

PIERRE LOUYS: A MULHER E O FANTOCHE








Escrevi aqui, há dias, a propósito de um filme projectado na última sessão do clube de cinema, e acerca do qual alguém, nessa sessão, mencionou dois romances.


O filme, já agora, chama-se O Diabo é uma Mulher, e é protagonizado por Marlene Dietrich. Foi realizado num tempo onde, como lembrava precisamente quem o apresentou, o cinema estava ainda a descobrir-se: não se tinham instalado fórmulas nem convenções cinematográficas, de modo que quase tudo valia como experiência, ensaio, tentativa - e originalidade.

Um dos livros associados ao tema foi Fiesta, de Hemingway. Li-o, já o comentei.

O outro é A Mulher e o Fantoche, de Pierre Louys: concluí-o ontem à noite. É o romance, publicado em Paris (1898), que está na origem do filme de Sternberg.

Se descontarmos uma «escrita de época», em que seria perfeitamente aceitável, por exemplo, construir-se a fala de uma personagem como um discurso literário, longo e prolixo, sem quaisquer marcas de oralidade; se descontarmos o facto de que mesmo as personagens jovens e populares, como Concha Perez, se exprimem filosofando numa linguagem assaz sofisticada, isto é, se nos concentrarmos no essencial, apercebemo-nos de que estamos, por várias razões, perante uma obra verdadeiramente subversiva no tratamento dos tabus sexuais: Concha é, inicialmente, uma moça de dezassete anos desejada arrebatadamente por homens maduros, que querem fazer dela sua amante; por outro lado, o espectro do sado-mazoquismo não podia definir-se mais claramente; e é perturbador o modo como ela manipula Don Mateo, conduzindo-o ao limiar do paroxismo, negando-se-lhe no último momento, aceitando-lhe as prendas e o dinheiro, desaparecendo inesperada e sistematicamente da sua vista, da sua vida - para reaparecer depois, por coincidência, com toda a tranquilidade, sem qualquer medo. De nada: «Nem da morte», como afirma Don Mateo.


O título, ou melhor, os títulos, tanto o do livro como o do filme, são enganadores: porque, porventura, o que vemos é muito mais do que o ludíbrio e a manipulação do homem por uma mulher, ou a redução da mulher à figura do demoníaco: Luís de Almeida de Eça, que apresentou o filme e falou dos livros, apresentava uma leitura particularmente interessante: a questão é a do radical choque entre o feminino e o masculino; é a de uma diferença que seria da ordem da incompatibilidade: homem e mulher não desejam nem amam da mesma maneira. E, portanto, em última análise, acerca da impossibilidade do amor.

É, em todo o caso, um livro no masculino: a mulher não é o diabo, mas um ser incompreensível, inalcançável, pura liberdade; o homem não é o fantoche, mas o predador cego de desejo, sem subtileza, frequentemente brutal. Sobretudo, não é uma vítima, se nos lembrarmos do que impele a história: a sua tentação e tentativa de conquista de uma mozita.

sábado, 7 de maio de 2011

ERNEST HEMINGWAY: FIESTA

Posso dizer que o meu juízo acerca da obra de Ernest Hemingway se fundava num preconceito e na aceitação de duas excepções relativamente a esse preconceito.
O preconceito: Hemingway é um escritor menor e um dos menos interessantes cultores da transplantação, para a literatura, de uma linguagem despida e soi-disante «objectiva», própria da reportagem. Foi mais rica a sua vida, no limiar da aventura e do politicamente incorrecto, e até a sua morte, do que qualquer um dos romances que escreveu; detestei esse tão amado e celebrado O Velho e o Mar. Nunca ultrapassei metade de O Jardim do Paraíso.
As excepções: Por Quem os Sinos Dobram e algumas passagens e personagens de Paris é Uma Festa.

No clube de cinema da minha escola, a propósito do filme que vimos esta semana, foi mencionado um livro de Hemingway que eu não sabia se tinha lido, se não, e se teria ou não em casa. Fiesta. Procurei-o, não estava nas minhas estantes. Passei pela biblioteca: com muita sorte, achei uma edição antiga, da Ulisseia, com prefácio e tradução de Jorge de Sena.

Há, no organismo feminino, ciclos, dinâmicas e funcionamentos - e disfunções - que só uma mulher pode verdadeiramente compreender. Este romance é, por oposição, acerca de um «problema» que, de algum modo, só um homem consegue captar em toda a sua extensão e implicações. É sobre aquilo que a linguagem antiga da psicologia, hoje banida ou reconvertida, costumava designar por «impotência». É sobre a risibilidade desta disfunção, como afirma o próprio Jake Barnes, como se se reduzisse a uma condição cómica, ao invés de se intuir nela o medo secreto de todos os homens, a mancha na virilidade, a vergonha e a diminuição mais ainda psicológica do que física.

Não que seja um livro que só um homem possa compreender: a trama, que cruza duas histórias diferentes, tem por fio condutor uma ideia magnífica nas possibilidades e nos cambiantes, que é a de um amor impossível, ou seja inconsumável: precisamente o amor entre Jake Barnes, que não poderá realizar o acto sexual, e Brett, a qual, reconhecendo que ele é o homem da sua vida, o deseja sem nunca o poder ter, transferindo a sua energia libidinal para todos os outros homens, numa espécie de delírio sexual de substituição, imparável e sempre insatisfatório: fugindo-lhe, portanto, e procurando-o, ora afastando-o ora regressando a ele, num eterno e irresolúvel dilema. Trata-se aqui, como se vê, também de uma questão intimamente feminina, que é a de saber em que medida o sexo, sem dúvida importante, é fundamental no amor: ou seja, pode - ou consegue - alguém, uma mulher, ou um homem afinal, suportar a vivência de um amor em que a consumação sexual será para sempre impossível? Das mulheres, costumava dizer-se que sim: criou-se o mito de que o amor no feminino é mais puro e menos físico, mais carente de romantismo e capaz de dispensar o sexo. Diria que o amor é diferente, na perspectiva de um homem e de uma mulher, sem dúvida. (Outra questão: será, então, alguma vez possível?). Mas é claro que o mito que enunciei não passa disso: um mito.

Por uma vez, a escrita de Hemingway é a mais adequada à narração: é particularmente eficaz a linguagem que parece tão seca, todavia muito sugestiva sempre, evitando qualquer recurso demasiado visível a figuras de estilo, mas, no entanto, usando magistralmente as imagens do quotidiano como símbolo da impotência: o elevador que não consegue subir, os gestos ritmados do polícia que coordena o trânsito com um bastão. (Precisamente, aliás, dois dos exemplos usados pelo orador que, no clube de cinema, nos falou do livro...)

E seguindo, fascinado, a evolução do romance (entrei agora na segunda parte), penso em como me enganei no juízo fácil com que arrumara já definitivamente Ernest Hemingway.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

ARTHUR KOESTLER: O ZERO E O INFINITO



1.

As etiquetas foram-me importantes, durante a minha juventude. Falo de etiquetas filosóficas ou ideológicas: tornei-me sucessivamente cristão, existencialista e marxista. Por esta ordem.
A verdade é que fui um marxista tardio, ou seja, casei com a teoria de Marx, de Engels e de Lenine numa altura em que já se conhecia muito bem a natureza da URSS, e alguns dos intelectuais mais honestos haviam posto (e há muitos anos) estrondosamente fim a namoros antigos com o comunismo soviético, apontando sintomas da opressão e da asfixia totalitárias. Já lera Orwell, já lera até As Mãos Sujas, de Sartre, e Les Aventures de la Dialectique, de Merleau-Ponty, mas nenhuma argumentação conseguira romper o meu fascínio intelectual.


2.

Um dia, li O Zero e o Infinito. Não sei sequer o que me levara a comprá-lo: não creio que já tivesse ouvido mencionar o autor. Era uma tradução portuguesa, se a memória não me atraiçoa, numa edição que tinha uma capa vermelho viva.
É um romance da autoria de Arthur Koestler: os seus camaradas de um passado comum de militância comunista apodavam-no entretanto de traidor e renegado. Koestler rompera com o partido antes ainda do Pacto Germânico-Soviético, e os seus ex-companheiros nunca lhe perdoaram que escrevesse acerca do despertar do seu sono dogmático.
«Escrever» aquele livro: em O Zero e o Infinito fala-se de um velho comunista inspirado em Trotski (e quem diz «Trotski» diz todos aqueles que, de um modo ou de outro, sofreram e sucumbiram por causa das suas discordâncias em relação ao programa de Estaline.)

3.

Resumida (e reduzida) a estes termos, parece uma obra política. É-o, sem dúvida: mas é principalmente uma obra filosófica, no sentido em que se trata - como em 1984, de algum modo - da discussão entre diferentes concepções: o poder não eliminará a fonte perturbadora sem primeiro tentar convencê-la; por outras palavras: mais do que uma luta entre forças físicas, é a uma luta intelectual que assistimos; antes do mero exercício do poder, é uma luta de ideias que testemunhamos, uma luta de olhares, uma luta pela razão. (Falsa e injusta porque, naturalmente, desigual).
É, porventura, um livro datado. Estou certo que sim.
E, no entanto, não estarei a falsear grandemente os dados se vos disser que a minha terapia ideológica (que me não tornou necessariamente um anti-marxista) principiava nesta leitura.

domingo, 1 de maio de 2011

DINIS MACHADO: O QUE DIZ MOLERO. MÁRIO ZAMBUJAL: CRÓNICA DOS BONS MALANDROS


Para além dos livros portugueses que definiram um trilho na literatura - alguns dos escritores do século XIX, muitos dos inovadores do nosso tempo -, há duas obras estranhíssimas que vingaram por uma improvável constelação de razões. Não pretendiam ser livros «intelectuais», mas a verdade é que se tornaram objectos de culto, com um certo impacto na intelligentzia da época; não tinham a intenção de levar a cabo nenhuma revolução literária, mas levaram-na pela originalidade com que transformavam pequenos malandros em protagonistas; não se propunham ser lidos como tratados de psicologia ou de sociologia, mas captaram deliciosamente a dinâmica de caracteres e de grupos, valores, a história recente (ou a evocação da infância perdida) e a inventividade portuguesas. Transformaram-se em ícones, passaram ao teatro e ao cinema. Representam, no entanto, mais do que uma época: são, ambos, obras incontornáveis da cultura portuguesa. Um deles é O Que Diz Molero, de Dinis Machado. Foi, dos dois, muito sinceramente, o livro que levou mais tempo a conseguir-me. Gabavam-mo e eu tentava entrar, mas ficava sempre à porta das primeiras páginas. Parecia-me uma torrente de memórias e referências sem passagens, nem critérios ou fronteiras: um autêntico desabamento; referiam-se ao seu humor negro e certeiro, aos impagáveis diálogos que António Feio e José Pedro Gomes recuperaram para o teatro, mas não chegava a nenhum ponto que me parecesse particularmente engraçado. Até um dia.
Porquê? Sabemos explicar? Por que razão uma obra que nos volta repetidamente as costas, um dia se mostra disponível para nós? (Parece-me óbvio que, às vezes, não se trata da disponibilidade do leitor para o texto, mas do contrário); o facto é que, um dia, não entrei no livro; foi mais do que isso: escorreguei, como se viesse por um escorrega abaixo. E recordo-me de estar no metropolitano a rir, um pouco embaraçado, temendo que reparassem em mim. Encontrei tudo o que me prometiam. E mais, muito mais.

*

O outro é Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal. E se de Zambujal, para mim, nenhum outro romance é sequer lembrável, esta crónica acerta em cheio no coração do espírito lusitano, à volta de um grupo que, como crime, quer planear aquilo de que ninguém mais se lembraria, e nutre um puro horror pelas armas ou pelo sangue. Muito do melhor que se escreveu em Portugal tem que ver com isto: um certo tom cómico, mas que não deixa de passar pelas tristezas, apontar os desamores e, sobretudo, preferir como arma fatal o gume da ironia. António Vitorino d'Almeida, o maestro, faz isso no romance da sua autoria que prefiro (não Coca-Cola Killer, by the way, mas o praticamente desconhecido Um Caso de Bibliofagia), remontando à graça de todo o Eça e de algum Camilo. (Ou do injustamente esquecido André Brun). É uma ironia tingida de melancolia, que, aliás, hoje se tende a perder um pouco: está ali. Na Crónica. Dos Bons Malandros. Isto é: na crónica de nós próprios, em certa medida, afinal.