quinta-feira, 23 de junho de 2011

ANNABEL LYON: ARISTÓTELES E ALEXANDRE


Sempre considerei Platão um filósofo dotado de uma poderosa imaginação e, mercê dela, o produtor de um pensamento rico, sagaz e fascinante, embora pouco atento aos pormenores e capaz de desprezar com excessiva arrogância os dados dos sentidos; pelo contrário, Aristóteles sempre foi, na minha perspectiva, o estudioso dos detalhes, que examinava meticulosamente o pó das sandálias, as fezes de mosca, as escamas de peixe, e, todavia, falho de fantasia; muito inteligente, extraordinário como sistematizador, contudo árido e pouco preocupado com a beleza da escrita. Entre os dois, o meu coração teve sempre a sua predilecção imediata: gosto de ler Platão, enquanto Aristóteles, ingrato rígido, sempre me conduziu rapidamente ao bocejo.

Aristóteles e Alexandre é, em face desse "preconceito", um romance que tem o condão de humanizar a figura de Aristóteles. Mais do que o sábio que seria uma espécie de Sherlock Holmes da Antiguidade, deparamos com o adolescente entusiasta e temente do pai, um médico que nem sempre o compreendeu; deparamos, mais tarde, com o jovem que se entregou ao ensinamento de Platão, de quem foi um discípulo sempre renitente, curioso, exigente; e, por fim, ao homem casado, com filhos, que aceita tornar-se mestre de Alexandre - filho de Filipe, o futuro (quando responder à chamada do destino) Alexandre da Macedónia.

Para quem se interesse por história e por filosofia, é visível o rigor deste romance. Como exercício de investigação histórica, é notável a forma como Annabel Lyon reconstitui um tempo de preparação de guerra, uma espécie de pré-guerra mundial (se estivermos a falar do mundo conhecido pelos protagonistas), que é também um choque de culturas e de mundividências: as da brilhante Atenas, auge da grandeza intelectual e artística, e as de Péla, capital da Macedónia, que cultiva o ideal do guerreiro, da virilidade, da resistência. Como exercício de biografia (ou de pseudo-auto-biografia, se atendermos a que o narrador é o próprio Aristóteles), o filósofo com que deparamos é uma figura interessantíssima, tanto no seu espírito de observação e no seu raciocínio paradoxalmente veloz e sólido, como nos seus temores, nas suas fragilidades, na sua doença bipolar (que, obviamente, nunca como tal poderia ser mencionada no romance, mas se torna evidente pela descrição dos sintomas...). Finalmente, do ponto de vista das ideias, o romance é de uma impressionante erudição: as conversas e as discussões, e particularmente as lições que Aristóteles vai leccionando a Alexandre e aos seus companheiros, são o terreno para a exposição das ideias do aristotelismo, ou da sua oposição ao platonismo, como se estivessem sendo pensadas e construídas a partir das situações.

Como Annabel Lyon consegue manter este grau de erudição numa ficção, sem que esta se torne maçuda e sem, por outro lado, cair na tentação fácil de a transformar num policial da Antiguidade (que é, pelo que tenho percebido, a solução de uma grande parte das revisitações que o romance tem experimentado, nos últimos anos, à Antiga Grécia ou a Roma) é que não deixa de ser espantoso.

Sem comentários: