terça-feira, 26 de julho de 2011

LARS KEPLER: O EXECUTOR


O romance policial tem uma tradição que, aliás, o escritor norte-americano S. S. Van Dine traduziu num conjunto respeitável de regras: o criminoso nunca deverá ser o próprio investigador, não pode haver recurso a auxílio sobrenatural, nem a aparelhagem demasiado sofisticada (que, por exemplo, em CSI funciona quase como «ajuda sobrenatural»), et caetra. Querendo fazer-se da ficção policial o terreno de uma competição justa com o leitor, um jogo limpo, evita-se tudo o que não seja uma série de indícios a que o velho raciocínio aristotélico-sherlockholmiano consiga dar sentido.

A tradição, notoriamente, tem rompido por todos os lados, em face de um público medíocre e pouco exigente, viciado em séries televisivas.
Posto isto, dos países nórdicos chegam-nos, em matéria de literatura policial, significativas surpresas - exemplos de ruptura interessante com a tradição: Stieg Larsson e Lars Kepler são, na minha incipiente óptica, os que merecem menção. (Camilla Läckberg situa-se muitos furos abaixo).

Kepler, que já sabemos que não é "um" autor, mas o pseudónimo sob que se acoita um casal, apresenta detectives estranhos. Joona Linna, em O Executor, não é um "dedutivo" típico - nem um "abdutivo", como diria Umberto Eco acerca de Sherlock Holmes -, mas um "intuitivo". A mim, convence: talvez porque venha, simultaneamente, lendo Blick, de Malcolm Gladwell, onde se argumenta que, paralelamente à rigidez formal do raciocínio silogístico, se oculta sempre a possibilidade de uma secreta iluminação, de uma súbita apreensão que nos põe em face da solução.

Entendamo-nos: os vestígios estão presentes; o leitor pode reuni-los e "raciocinar", a posteriori, sobre eles; não se trata, pois, de um sexto sentido que emerja do nada. O que é verdadeiramente inovador - e notável - é que podemos assistir a uma fenomenologia da intuição. Os indícios não têm um ar completo, não parecem pistas: são sinais quase imperceptíveis, de cuja importância é fácil não nos apercebermos. Mas ficam a soar, como vagos pressentimentos: algo que vimos sem ver, e, todavia, nos incomoda; conjugações a que falta uma peça que intuímos algures, que poderíamos ter captado, uma quase invisibilidade à espera de uma antena que a torne visível. Ou seja: há uma lógica nesta investigação: uma lógica de tipo diferente, sem o peso intrincado de mediações, que esperávamos - uma lógica precisamente da imediação ou do imediato.

É certo que este romance está excessivamente [?] contaminado pelo modelo da "acção": ou seja, mais do que um criminoso intelectual, o livro vive de um assassino que vemos como uma espécie de máquina de guerra, implacável e treinado até ao limite. Isso só não é um ponto fraco, na comparação com os clássicos da literatura policial, porque a tanto se deve essa vertigem da leitura, essa precipitação dos acontecimentos que suspende o leitor de uma curiosidade insaciável ao fim de cada capítulo, um pressentimento de tragédias iminentes em cada parágrafo, uma inquietação larvar e contínua.

Subjazem, por outro lado, à narração, uma cultura política (a história recente do Darfur, o comércio de armamento entre a Suécia e os países de África) e uma cultura musical (a música de Ravel e a de Paganini terão, na história, um papel não negligenciável) que não deixam de surpreender, onde se esperava uma inconsequente leitura de férias, uma mera pastilha elástica. São elementos que ajudam a compor um "estilo" nórdico: linear e, contudo, com uma estranha densidade, uma perturbadora rouquidão de voz.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

SHIRLEY JACKSON: SEMPRE VIVEMOS NO CASTELO


O primeiro capítulo cria imediatamente um ambiente de opressão. Mary Katherine Blackwood percorre a vila, para fazer as compras da semana, e vamos adivinhando o clima malévolo que a rodeia, de suspeição, desprezo, troça, um clima que ela, paradoxalmente, teme e desafia, como num jogo.

Há, portanto, um terrível segredo que pesa na relação (ou não-relação) entre os habitantes da terra, mesmo os raros que mantêm uma certa cordialidade, como Stella, a proprietária do café, e a família Blackwood, de que Merricat (Mary Katherine) é a única com que se confrontam uma vez por semana, nessa intolerância feita sobretudo de mútuo medo.

Shirley Jackson é, sem dúvida, uma digna herdeira de Edgar Allan Poe: uma representante de mão cheia do Gótico Americano. E tornam-se-nos claras as afinidades entre ela e Donna Tartt, a autora do excelente Uma História Secreta, que afirmou (está na contracapa): «Não conheço mais nenhum autor que evoque uma tão apaixonada e imediata reacção nos seus leitores, sejam eles novos ou velhos». A minha reacção ao romance de Shirley Jackson é imediata e apaixonada, é certo, e tensa e temerosa. Um anónimo criticou-me, uma vez, pelo elogio da angústia a propósito de certo livro, mas não posso senão repetir: lê-se Sempre Vivemos no Castelo com uma angústia crescente.

A ela ajuda, sem dúvida, o ponto de vista. A narradora é a própria Merricat, e, portanto, somos sugados para o interior do sistema mental que elaborou de modo a defender-se daquele mundo opressivo; identificamo-nos, de certo modo, com a sua visão delirante, entre compulsões e mitos, numa relação mágica com os objectos, as pessoas (os bons, o que resta da sua família, e os maus, a população que os cerca), com a casa e com um passado que preferiu recalcar. Não admira que esta visão periclitante, assente em defesas mais imaginárias do que efectivas, se desequilibre com a súbita presença de um primo, que «as veio visitar e ajudar», mas, afinal, se instala - se instala visível e pesadamente, com as suas passadas e a sua curiosidade, o seu cachimbo e o seu oportunismo: são páginas magníficas na descrição da intrusão, da apropriação segura e cínica, da alteração de todo um universo a partir de uma única mudança.

terça-feira, 19 de julho de 2011

BEM-VINDA, SHIRLEY JACKSON, AO MEU CORAÇÃO

Chama-se Shirley Jackson.
Não a conhecia. Ficou-me debaixo de olho porque, num excelente ensaio, Rogério Casanova, na revista Ler, se lhe referia tentadoramente. A crítica de Rogério Casanova nunca me é indiferente.
O conto, aliás, de que ele falava como tendo provocado um grande escândalo é The Lottery, que não existe traduzido para português, mas, entretanto, tratei imediatamente de encomendar no original.

Há, contudo, um romance que passou completamente despercebido por cá, e encontro, na fnac, com 10% de desconto. Não há dúvida: trata-se mesmo de Shirley Jackson. O livro intitula-se, na edição portuguesa, Sempre Vivemos no Castelo. Em breve darei novas.

sábado, 16 de julho de 2011

DOMINGOS MONTEIRO: O MAL E O BEM


Estávamos seis ou sete pessoas à volta de uma mesa, na esplanada de um café minúsculo. Falávamos de livros: não unicamente, mas em dado ponto, falámos disso. E, a propósito, sentado à minha esquerda, J. S., um moçambicano cínico como eu, introduziu o nome de Domingos Monteiro: «É absolutamente extraordinário. E pouco se ouve sobre ele. Tenho um livro em casa, antigo, uma edição de uma tal Sociedade Cultural de Expansão, com um conto, O Bem e o Mal, que é realmente magnífico: este gajo não tem nada que ver com aqueles intelectuais que prescindem da história para se masturbarem com as palavras; é uma narrativa que não conseguimos parar de ler...»

Eu tenho um sapo íntimo. Parece adormecido, mas sob a sua aparente sonolência há uma atenção pronta a disparar: se passa um insecto como as palavras de J. S., a língua do meu sapo projecta-se vertiginosamente e caça-o de imediato. Pedi ao meu amigo que me emprestasse o livro. Trouxe-mo, abri-o, li o primeiro conto - uma novela, no fundo - quase de um fôlego.

Duplamente este texto nos interpela do ponto de vista filosófico. Em primeiro lugar porque, como o título sugere, é do bem e do mal que se trata, na sua relação com o estrito cumprimento da lei: não é o "legalista", porventura, na utilização da lei para seu próprio e único benefício, um homem pior do que aquele a quem a vocação para o bem conduz sistematicamente a transgredir? Mas o segundo aspecto é talvez ainda mais interessante: escrito sob a forma de um diálogo (o que nada tem de original), ou seja, de uma narração que um homem faz a outro, O Bem e o Mal funciona como uma ilustração da dialéctica do Senhor e do Escravo, em que, como argumentou Hegel, o Senhor se torna escravo do Escravo; «escravo do Escravo», posto que depende inteiramente do olhar dele e do seu reconhecimento para ser quem é, para se confirmar perante a sua própria consciência: de certa forma, ao comprometer o seu empregado, obrigando-o a assinar a confissão de um desvio, a única coisa que o patrão deseja é ter alguém que lhe possa ouvir a confissão, sem que o venha a denunciar. Alguém!? Mas - perguntaríamos - por que não, precisamente, um padre? Porque este empregado é, secretamente, o homem capaz de o julgar, a consciência pura e bondosa, um idealista, e não uma «instituição» que lhe perdoaria em nome de Deus.

Porque, de resto, o senhor Rodrigues não quer, de Porfírio, qualquer perdão. Desafia-o, humilha-o, ridiculariza-o: não há dúvidas de quem é ali o Senhor e de quem é o Escravo. E no entanto, há, na relação do senhor Rodrigues com o mal que a sua prática moralmente foi, e com as consequências derradeiras do mal, uma culpa e uma dor que só perante a consciência justa de Porfírio se pode assumir na sua própria verdade, na sua essência de caminho livremente escolhido.

Há outros dois contos, «A Menina Cega» (que já li e é também interessantíssimo) e «O Encontro» (que nem sequer principiei), mas, como dizia J. S., «O Mal e o Bem» excede as medidas, solicitando um leitor dedicado e um pouco ansioso, que possa merecê-lo efectivamente.

terça-feira, 12 de julho de 2011

JOSEPH HELLER: CATCH 22


O primeiro capítulo tem um tom quase surrealista que não captamos, imediatamente, em toda a sua extensão de estranheza. O protagonista é um piloto de bombardeiro, que, no tempo da intervenção norte-americana na 2ª Guerra Mundial, se encontra hospitalizado; dedica-se a um acto de censura: cabe-lhe a tarefa de reler cartas que os soldados pretendem enviar a familiares, suprimindo informações secretas, delicadas ou - presumo - reveladoras de qualquer desânimo; mas Yossarian faz da sua tarefa um passatempo irónico e divertido: elimina aleatoriamente, e por fases, ora, primeiramente [imaginemos] todas as referências afectivas, ora, mais tarde, digamos,todos os verbos, terminando por, numa derradeira fase, só deixar visíveis as conectivas, riscando tudo o mais.

Embora este modo de agir pareça pouco normal, somos tentados a encará-lo como uma brincadeira num tempo e num espaço alterados, sufocantes, dolorosos: na continuação da leitura, apercebemo-nos de que o comportamento de Yossarian não é um desvio "humorístico" para suportar (ou, de algum modo, aligeirar) uma situação e um dia-a-dia deprimentes. É mais do que isso: é uma maneira de estar comum a todas aquelas personagens, uma visão partilhada por todo o exército, numa espécie de delírio colectivo. Os diálogos são alucinados, cheios de equívocos, como se ninguém se ouvisse senão a si mesmo. As obsessões, as manias, as manhas. Não há revolta nem terror, porque o ambiente de guerra se esgota nesta rede de relações burocraticamente hierarquizadas, que obedecem a normas que são, elas próprias, em certa medida absurdas.

Catch 22 (em português: o «artigo 22») remete, precisamente, para essa perspectiva. Kafka ou Buzzati não andam longe - e a visão de qualquer um deles poderia ser uma chave na leitura do romance de Heller: um artigo cujo cumprimento leva ao paradoxo, ao círculo vicioso, ao beco sem saída; cujo cumprimento se contradiz a si mesmo: dou parte de louco se quero fugir à guerra, mas dar parte de louco torna-se, rapidamente, motivo para ser conduzido à guerra. [Na verdade, porque a alegação de insanidade pelo próprio é a prova indiscutível da sua perfeitíssima sanidade mental]. Tudo isto à luz, ou à sombra, do vago «artigo». Não espanta que tenha sido um romance adorado (por uns) e odiado (porventura por muitos). Não espanta que nem sempre penetremos nas mentes daquelas personagens, que poderão estar a ser irónicas, ou inocentes, ou loucas. Não espanta que nos divirta. Nem espanta que a diversão às vezes magoe...

domingo, 3 de julho de 2011

PEDRO GUTIÉRREZ: TRILOGIA SUJA DE HAVANA


O livro foi-me recomendado por um amigo cujo gosto literário tenho em grande apreço. (Confesso: sobretudo desde que percebi o seu entusiasmo em relação ao meu próprio romance).
Numa biblioteca, procurando a obra que me recomendaram, encontro-a, depois de uma pesquisa acidentada, na secção de literatura erótica.
Trago-a - mas antes de iniciar a leitura, os meus olhos suspendem-se da fotografia do autor, na contracapa: um sujeito completamente calvo, em camisola interior, de ar pouco amistoso, um charuto grosso entre os dentes.
Depois, começo a ler. É uma obra singular, de facto.

O erotismo compreende-se: numa linguagem crua e provocadora, que narra na 1ª pessoa, estes contos descrevem um macho em permanente estado de erecção, orgulhoso do modo como «faz as mulheres virem-se várias vezes», que adora mulatas, rum e erva. Referem-se-lhe como a uma espécie de «Bukowski do Caribe ou de Henry Miller de Havana»; passo adiante nas analogias: a questão é que, a partir do seu olhar apolítico (ou melhor: de quem explicitamente se «caga na política»), extremamente irónico, sem esperança na redenção da humanidade - ou, sequer, de Cuba -, Pedro Gutiérrez reconstitui uma Havana tensa de vitalidade e de sexo, onde a infidelidade e a fome fazem parte do quotidiano, bem como o engenho e uma certa criatividade para o pequeno golpe como modo de sobrevivência.

Percebo o que divertiu tanto o meu amigo neste livro. Trata-se de um protagonista com o qual dificilmente não simpatizaríamos - até pelo assumir até às últimas consequências de uma certa marginalidade: leia-se por exemplo «Abandonando os Bons Costumes», despudorada confissão de como se vivem os dias segundo uma escolha - passar fome e procurar sexo, quando as outras escolhas seriam tornar-se persona grata do regime, ou meter-se numa balsa e escapar em direcção ao tentador capitalismo...