segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

ERSKINE CALDWELL: TOBACCO ROAD



Todas as falas das personagens falantes [porque a mudez, ou a quase-mudez, é uma característica de várias outras] estão impregnadas de Deus. É o Deus todo-poderoso do Antigo Testamento: curiosamente, o Deus omnipotente não parece mais do que um homem muito idoso e muito sábio, com lacunas que as criaturas não deixam de lhe apontar. A pregadora, por exemplo, Sister Bessie, considera que talvez seja preferível deslocar-se, ela própria, a casa de Lov, a fim de explicar à jovem esposa deste  - na verdade uma criança - como deveria comportar-se com o seu marido, ao invés de esperar que Deus lhe fale. Afinal, uma mulher percebe mais de assuntos de mulheres do que um homem. E Deus, por muito omnisciente que seja, não deixa de ser um homem!

Somos postos cruamente em face dos habitantes de casebres dispersos nas imediações de uma antiga estrada de tabaco. Pertenciam a um plantador que partiu, permitindo aos seus ex-trabalhadores que nelas continuassem até ao desabamento. O tempo é o de uma crise inclemente, e estas famílias do sul dos Estados Unidos da América, sem recursos de nenhum tipo, afundam-se numa espécie de vida primitiva, onde os instintos são os únicos instrumentos de adaptação e sobrevivência. Parece uma condenação. O solo desertificado não produz, o trabalho escasseia, as famílias aglutinam-se em barracões imundos, com idosos que se agarram desesperadamente à vida, recusando-se a morrer, e filhos que se multiplicam, para no entanto desaparecer cedo: uns, de morte prematura, outros casando também prematuramente, isto é, aos doze ou aos treze anos, mas a maioria fugindo para Augusta, a cidade próxima.

Compreendo por que sempre ouvi referir este romance como o contraponto de As Vinhas da Ira: aqui, o trágico nada tem de heróico; não há uma luta prometeica contra as agruras ou por uma vida melhor, mas, pelo contrário, o abandono a uma preguiça fundamental e a uma impotência para mudanças radicais: quando muito, um excesso de sonhos impersistentes ou de projectos continuamente adiados.

Neste mundo em que a fome é uma condição perpétua, que debilita e se manifesta na companhia constante de ruídos no estômago; onde a religião é um espeto de culpa e remorso nas consciências, mas não impede que o furto seja um expediente corriqueiro; em que os pais mal conseguem recordar os nomes de todos os filhos que os deixaram, embora alimentem a esperança de que algum possa ter enriquecido, e regresse para os auxiliar; em que se tornam de uma importância crucial o tabaco de mascar [em rigor, dizem-me que se trataria de uma espécie de rapé: o termo inglês é "snuff"] ou uma roupa decente, «de estilo», com a qual possam ser enterrados (apesar de ser a mesma gente que em vida usa andrajos, calças de ganga sobre o corpo, e anda descalça, ou improvisa sapatos: a avó traz, amarrados aos pés, cascos de mula), «neste mundo», escrevia eu no início do extensíssimo parágrafo, pouco mais há a esperar.

Não vejo propriamente malfeitores; vejo este velho Jeeter, preguiçoso e cobarde, que ninguém respeita, ou vejo estas mulheres [a mãe, a avó] cujo desespero faz pegar em paus para afastar, violentamente, de um saco de nabos, o seu legítimo proprietário - um homem que palmilhara muito caminho para os ir comprar por bom preço; entretanto, a rapariga de lábio leporino já se arrastara sedutoramente até ele, para levá-lo a esquecer-se do dito saco e a deixá-lo por um momento desprotegido. No caso da rapariga, também porque à sua fome se acrescenta uma fome de sexo, própria de uma adolescente feia e indesejada. Mas que culpa têm os Lester do seu comportamento? Todos deviam saber que é errado aproximarem-se da sua cabana quando se traz alimento: os Lester, essa matilha famélica que se une, numa complexa manobra de cooperação, para furtar o que quer que acalme os roncos do estômago.

Este é o livro por mim desejado há muitos anos. O livro de que a minha mãe me falava e que eu, muitas vezes, tentei comprar - sempre em vão; não creio que esteja traduzido em português. Encomendei-o, recebi-o, por fim, e leio-o para preencher também uma fome antiga, semelhante às dos Lester. Erskine Caldwell é, aqui, absolutamente brilhante. Esta novela tem qualquer coisa de peça de teatro: a quase unidade da acção, a quase unidade de espaço (com excepção das breves e impagáveis deslocações que se fazem até à cidade de Augusta) e quase a de tempo. Ao longo de vários capítulos, narra-se o regresso de Lov, que fora comprar um saco de nabos [os "turnips"; «nabos», não é?]; a passagem por próximo da casa dos Lester, que o observavam, atentamente, há muito; e a tentativa de estes se apoderarem dos nabos. É esta primeira parte [seguida pela chegada da extraordinária pregadora, Sister Bessie, tanto para dar um sentido religioso ao arrependimento do velho pai ladrão, como para comer alguns dos nabos restantes e conseguir um marido] que serve de fio condutor, agregador de muitos pormenores, a partir dos quais nos vai sendo apresentada a história e as causas cruéis do estado presente daquelas vidas.

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