terça-feira, 13 de agosto de 2013

ALBERTO ONGARO: A SOMBRA HABITADA



As pessoas pertencem a cidades. Pode ser-se de uma cidade que nunca se visitou, e viver-se para um dia a ela chegar. Um mito, uma Meca, uma eterna ligação platónica. Noutros casos, esteve-se aí uma vez, há muito, e o desejo de retornar é também um desejo de recuperação de certo momento perfeito. Ou então, revisita-se constantemente, sem nunca lhe esgotar a Alma.

Neste sentido de pertença, pertenço a Paris. Sinto quase embaraço em o confessar, entre tantas outras e maravilhosas possibilidades, muitas das quais também conheci; mas Paris completa-me como nenhum lugar mais no mundo. Já a vi pujante, correspondendo aos, e superando os, meus sonhos e anseios mais remotos, e já a vi envelhecida e degradada, com tristes e inesperados vestígios de desleixo; mas, na essência, nada mudou. Qualquer coisa no mais fundo de mim tem a forma de um Dâmaso ou de um Raposão. Paris será sempre aonde regressarei.

Isto dito, podem compreender por que razão A Sombra Habitada, de Ongaro, é um romance que me ocupa de imediato. Paris é o seu habitat. Usar-se-ia facilmente, aliás, este livro lindíssimo como um guia: todas as ruas, o jardim, os cafés, as praças, o rio, com as duas margens tão dissemelhantes, se nos expõem diante dos olhos ou da memória, com uma vivacidade e uma limpidez fulgurantes. Mas mais do que isso. É também uma viagem no tempo, o que com esta leitura se iniciará: o protagonista depara-se, de súbito, numa exposição de fotografia, com a foto, captada nos anos cinquenta, de uma rapariga que ele reconhece imediatamente - sentada a uma mesa da esplanada de um café, em Paris, na companhia de um jovem, cujo rosto permanece encoberto pelos cabelos dela. Aproximam-se para um beijo, ou beijam-se. É tudo. Em Londres, onde vive agora e se tornou um próspero negociante de Arte africana, o narrador e protagonista não resiste a enfrentar este sinal, este eco, esta sombra do passado, que é uma mera fotografia.

«Enfrentar», porque a sombra é uma sombra habitada, uma vez que as figuras, de duas dimensões, a preto e branco, constituem o registo de pessoas que terão provavelmente continuado a existir para além do instante fixado; de maneira que, mais do que evocar o passado, aqueles traços contêm um enigma e uma interrogação em relação ao futuro. Quem era aquele jovem, de sapatos americanos, à moda nos meados da década, beijando a rapariga que Alberto reconhece como a sua fugaz e inesquecível namorada de então? E, sobretudo, porque lhe fugiu ela? E em que se terá tornado?

Já entenderam o essencial: regressando a Paris, lutando para identificar os sinais que fazem a fotografia falar [um caderno sobre a mesa dos amantes; um objecto pousado numa cadeira; um homem, calvo, que ri, pegando, pela mão, numa criança que chora; um cão; alguém de costas], o narrador penetra connosco numa cidade que é uma coisa mental, histórica, mítica: Paris em 1958, como uma sombra habitada por Sartre e Simone de Beauvoir, sentados não muito longe, sons de jazz em pequenos clubes, à noite, e sobretudo Gérard Philipe, o ícone de todos os jovens, aquele cujos gestos uma geração inteira de rapazes franceses copiou, e cuja morte deixou órfã.

É, portanto, para mim, e por tudo isto, uma obra irrecusável, inevitável. Uma oportunidade que me encontra receptivo. Desenhada no subtil e sugestivo limiar de um romance policial, em que, efectivamente, se transformará, A Sombra Habitada evolui com uma encantadora imprevisibilidade, recusando todas as coincidências, desmontando todas as soluções fáceis, matando qualquer breve suspeita de algum deus ex-machina que tudo viesse resolver...                 

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