sábado, 28 de setembro de 2013

A DESCOBERTA DE JEAN d'ORMESSON



Concluo agora Au Plaisir de Dieu.
É um livro com uma profundidade que nos abarca por inteiro, em que nos movemos com o espanto das grandes descobertas e dos amores eternos. Trata-se de um romance que nos toca multiplamente e que certamente nos transformará.

Mais do que um romance, no sentido de uma história, ou de uma trama, o que d'Ormesson oferece [e de nós exige] é a possibilidade de penetrar em valores, e sentimentos, e mentalidades, que ele reconstitui sobre o fundo da História e, frequentemente, contra esta. Há episódios maravilhosos, mas os episódios - todos os episódios, diria - só interessam na medida em que nos revelam pessoas, experiências, visões. Modos de vida. «As ideias são quase nada, o modo de vida é quase tudo

Perpassa neste livro, que declaro agora, aqui, oficialmente, uma das obras da minha vida, a compreensão, às vezes dolorosa, de todas as pessoas na sua "irrecuperabilidade", na sua divergência íntima e irónica em relação à sociedade ou ao progresso. Veja-se a tia Ursula [von Wittgenstein], casado com o tio Pierre, veja-se a paixão completa, que aparentemente vivem, em que no entanto se introduz Mirette, numa composição que nos surpreenderá; veja-se Claude, o primo e grande amigo do narrador, com o qual este vive a liberdade de uma viagem que será, também, um rito de iniciação; veja-se, principalmente, o modo como Claude se afastará da família e do avô, respondendo ao chamamento de Deus, primeiro, ao da História, depois...

Philippe [um outro primo] e Claude estarão de lados ideológica e politicamente opostos, um deles associando-se à extrema-direita, ao nazismo, o outro, pela sua adesão ao comunismo. Combaterão, em Espanha, em frentes adversas. Nenhum deles é mau, e ambos se tornam compreensíveis à luz do olhar do avô, e da família, e se reunirão em Plessis-lez-Vaudreuil. Porque em todos os erros históricos há elementos de racionalidade e fervor que, se os não justificam, os tornam quase compreensíveis e, por outro lado, na marcha de todas as posições que, por fim, triunfarão, poderemos descobrir etapas em que foram injustas, decisões suas que foram cruéis, momentos, seus, maléficos.

O que não possuímos, e jamais possuiremos, lamenta-se o narrador em certo momento, é uma história dos sentimentos:

«Escreveu-se alguma vez uma história dos sentimentos? Temos histórias das batalhas, das dinastias, da pintura e da música, da literatura e da filosofia, das doutrinas económicas e dos movimentos sociais, do preço do trigo e da carne, dos meios da comunicação, do vestuário e dos costumes. Precisaríamos de uma história dos sentimentos. Receio muito que ela seja praticamente impossível de se redigir. Como fazer uma ideia, sem números, sem curvas, sem estatísticas, quase sem documentos, do que sentia e experimentava um romano da decadência, um camponês da Idade Média, um condottiere da Renascença, um burguês de Paris na época das Luzes, os nossos próprios bisavós em 1848 ou sob o Segundo Império? O que eles pensavam, somos ainda capazes, em rigor, de reconstruir e compreender. Mas o que poderiam significar para eles a felicidade, o prazer, o sofrimento, a ternura, a resignação ou o desespero, como o captaríamos? Como comparar, sobretudo, os seus sentimentos e os nossos? Era preciso colocarmo-nos no seu lugar, e não o podemos. [...] Ninguém saberá nunca se as pessoas eram mais ou menos felizes sem viaturas e sem televisão, sem novidade, sem dinheiro, sem necessidades e sem ambições, sem grandes esperanças, mas sem ilusões, sob o olhar de um Deus que lhes mandava calar-se, no seio de uma ordem imutável, na ausência da mudança.»      
   

Este excerto, central na obra, é uma chave fascinante do romance: podemos vê-lo como uma magnífica história dos sentimentos e, nessa medida, uma história pensada contra os lugares comuns e as ideias feitas da História.

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