quinta-feira, 10 de outubro de 2013

JOSEPH ROTH: A MARCHA DE RADETZKY



Fala-se em "Roth", e é natural que nos ocorra imediatamente "Philip". [De que, aliás, gosto muito: A Pastoral Americana e sobretudo O Complexo de Portnoy são obras maiores.]

A Lebre com Olhos de Âmbar foi o livro que me apresentou a Joseph: refere este autor abundantemente; em A Marcha de Radetzky, Joseph Roth, segundo nos conta o autor de A Lebre, teria mencionado o Banco Ephrussi como um dos ícones de Viena [está correcto, já confirmei]; suponho [e só posso "supor", uma vez que ainda não cheguei à passagem em causa] que também aponta, sarcasticamente, algum ou alguns dos Ephrussi, judeus ostensivamente ricos num Império Austro-Húngaro em que principia a alastrar o odor do anti-semitismo.

A Marcha de Radeztsky é, já de si, um título soberbo. Remete para a composição de Strauss, como um fio que permanentemente julgamos escutar ao longo de todo o romance, e que o autor evoca na execução da Banda de um regimento, com «ásperos tambores» rufando, «doces flautas» assobiando, «suaves címbalos» ressoando. Ora deliciem-se: «Aparecia no rosto de todos os ouvintes um sorriso de agrado e de enlevo, e nas pernas formigava-lhes o sangue. Ainda estavam parados e já pensavam que iam marchar. As rapariguinhas sustinham a respiração e entreabriam os lábios. Os homens mais maduros baixavam a cabeça e recordavam os tempos da tropa. As senhoras de idade estavam sentadas no parque vizinho, e tremiam-lhes as pequeninas cabeças grisalhas. E era Verão

Citando esta descrição, julgo captar uma espécie de génio comum à escrita de diversos autores deste tempo, desta cultura, desta língua. A aliança entre um penetrante espírito de observação do mais subtil pormenor [um modo, um tique] e o poder da explicação da lógica desse pormenor, como se sob um gesto, mesmo muito simples, fosse possível a revelação de um segredo, um propósito inconsciente, um sentido oculto. «Por vezes, o comissário distrital balançava um pouco a bengala, era como que um sinal exterior de uma exuberância que sabe guardar os limites.» Nas mãos dos espíritos mais sensíveis e talentosos, esta aliança entre a observação daquilo em que habitualmente se não repara, e a revelação do seu sentido secreto, oferece achados de uma fineza muito bela e muito surpreendente, intuições que nos flecham e ficam vibrando.

A Marcha de Radetzky, de certa maneira, ou melhor, à sua maneira, é também a história de uma família. Mas, diferentemente de Au Plaisir de Dieu ou de A Lebre de Olhos de Âmbar, esta família, os Trotta, tem uma fundação relativamente recente, e não se prolonga numa árvore de múltiplas ramificações. Sabemos pouco das mulheres: saem rapidamente de cena, pálidas e doentes, para deixar que o palco seja ocupado por gerações de homens austeros, solitários, que só episodicamente se encontram em face das suas próprias emoções, vividas como perturbação, como se as não compreendessem ou fossem um erro a liquidar.

O avô, um herói da batalha de Solferino, durante a qual salvou da morte o Imperador, não se reconhece na hiperbólica narração do seu acto tal como a lê num livro patriótico para adolescentes; indigna-se; protesta; escreve, pede uma audiência com o Imperador; de facto, este início muito simples marca um irrecuperável desnível entre a ascensão da família, sob a protecção do Imperador, e a verdade pura. É este desfasamento entre uma sóbria austeridade, que estabelece os limites do verdadeiro, e o rumor do excessivo, a emoção e o sentimento, de que se desconfia sempre, a lógica em que esta família se reconhece e reconstitui, geração após geração.

É sempre, pois, em face dos sentimentos, recalcados que retornam persistente e inesperadamente, que cada um destes homens se sente em desequilíbrio e em queda: que significa ser pai, ou ser filho, para além de um dever? como comportar-me ante o amor, ou a morte de uma amante, ou a piedade pelo marido da amante, a quem devo apresentar condolências? ou ante as emoções que me assaltam quando revejo, agora como um pintor bêbedo e sem recursos, que, inconveniente, me persegue, pedindo-me solidariedade, pelas ruas - aquele que foi o único amigo da juventude?        

Irónico, sensível, de uma delicadeza pungente, é um romance que se desenha sob a contínua ameaça do absurdo: o pavoroso reconhecimento da falibilidade do sentido, da racionalidade, da ordem. Que outra coisa senão isto vislumbrou Freud?

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