sábado, 29 de março de 2014

SAMUEL JOHNSON ACERCA DE UM CERTO PATETA



«Ele era pateta [ou insípido; o termo é: dull], mas era -o de uma forma nova, e isso levou muitas pessoas a pensar que era extraordinário.»
    
     Samuel Johnson [citado por James Boswell em The Life of Samuel Johnson]

segunda-feira, 24 de março de 2014

IVAN TURGUÉNEV: FUMO




Este romance de Turguénev é um órgão complexo, de uma inquietante actualidade: os diálogos nunca são obsoleta ou artificialmente literários, antes comportam o cunho credível da fala. [Os autores russos, aliás, são excelentes nessa reconstituição da oralidade, mostrando lapsos, hesitações, marcas várias de espontaneidade.] Há uma técnica amadurecida, que equipara o narrador a um maestro: narrar é, autenticamente, orquestrar. Existem círculos e planos diferentes, personagens pouco lineares, uma ambiguidade emocional e ética, a apresentação realista de discussões sociais e políticas, em salas ou quartos onde jovens fumam e se embriagam, ou a apresentação romântica de amores que intentam esconder-se, ou afirmar-se: e tudo deve ser conjugado sem erros, ou dispersão, ou previsibilidade.

O realismo do século XIX compraz-se mais na caricatura do que no retrato. Como em Flaubert - com o qual, aliás, Turguénev se correspondia - ou como em Eça de Queirós, um aspecto relevante no modo de captar a sociedade do tempo reside na atenção ao ridículo, ao excessivo, ao mau gosto, à estupidez; Bambáev é um Dâmaso, Gubarióv é um Pacheco. Detenhamo-nos por um instante no sabor tão indiscutivelmente queirosiano desta conversa:

« "Mas Gubarióv, Gubarióv, irmãozinho, para ele é que nós temos de correr! Eu decididamente venero esse homem! E não sou o único, todos na verdade o veneram. E que livro ele está agora a escrever... oh! oh! oh!..."

"Sobre quê?", perguntou Litinóv.

"Sobre tudo, irmãozinho, como Buckle, sabes... mas mais profundo... Tudo será solucionado e explicado claramente."»

"Mas já o leste?"

"Não, não li, e por sinal é até um segredo de que não devemos falar, mas de Gubarióv tudo se pode esperar, tudo! Sim!"»

Por outro lado, o romantismo é a outra face desta polifacetada composição. É até mais do que uma mera face, se estamos deveras - uma vez mais como em Flaubert ou como em Eça de Queirós - ante a história de um amor impossível, e tanto mais violento e ardoroso quanto mais imperdoável do ponto de vista das convenções sociais.

Quero assinalar 3 pontos em relação a este amor, ao amor aqui:

o primeiro diz respeito à profundidade psicológica com que as personagens são tratadas na experiência da paixão. Mesmo Irina, a femme fatale, é desenhada na convulsão interior de um dilema que a torna humana e vulnerável, não apenas uma figura de papelão, superior e sem remorsos. Podemos pontualmente irritar-nos com ela, mas quase nunca a odiamos; por outro lado, Tánia pode ser moralmente melhor do que Irina: no entanto, a maneira como a percepcionamos está longe de ser estanque; ora  é mais interessante, ora de uma melancólica sensaboria. Mesmo fisicamente, ora nos parece de uma beleza morna e pesada, que não estimula, ora a redescobrimos com um fulgor surpreendente;

o segundo tem que ver com a curiosa noção do amor como de uma essência: algo totalmente exterior a mim, que me aborda e invade como um galião pirata. Descartes e Husserl ensinaram-me que, pelo contrário, o amor ou a paixão não são um objecto exterior ao sentir, acerca do qual porventura nos enganássemos: não são senão o próprio exercício desse sentir. E, portanto, La Palisse, na medida em que estou sentindo amor, há-de ser seguramente amor aquilo que estou a sentir. Daí a estranheza com que leio a questão que uma mulher amada dirige ao homem que lhe confessa o seu amor: se ele tem a certeza; se não poderia estar equivocado. Como se lhe perguntasse: «é mesmo amor o que "vês" em ti? não seria possível estares a ver erradamente um objecto diferente, que confundisses com amor?» [Na verdade, talvez por vezes nos enganemos. Mas é porque os sentimentos coincidem em algum ponto - e se me sucede confundir amizade com amor, para exemplificar com um quiproquó frequente, é porque a amizade contém, de facto, uma parte de amor. Porém, Turguénev tem de situar as suas personagens em face de um amor hiperbólico, fora do controle da razão ou de um eu. O mar em fúria, prestes a destruir o batel a que se reduz qualquer eu];

o terceiro refere-se a um domínio tal da técnica narrativa, já de resto mencionado, que apreende a mutabilidade e a indefinição destas emoções, numa trama de claros e de escuros, ângulos de luz e ângulos de sombra, entre o que se mostra e o que se oculta, para que, de facto, o leitor não consiga antever qual das possibilidades triunfará - sendo, uma delas, a de o protagonista perder ambas as mulheres que ama, ou julga amar, ou não sabe se ama, ou quanto ama.



sexta-feira, 21 de março de 2014

CHARLES BAUDELAIRE: AU LECTEUR



 

La sottise, l'erreur, le péché, la lésine,
Occupent nos esprits et travaillent nos corps,
Et nous alimentons nos aimables remords,
Comme les mendiants nourrissent leur vermine.

Nos péchés sont têtus, nos repentirs sont lâches ;
Nous nous faisons payer grassement nos aveux,
Et nous rentrons gaiement dans le chemin bourbeux,
Croyant par de vils pleurs laver toutes nos taches.

Sur l'oreiller du mal c'est Satan Trismégiste
Qui berce longuement notre esprit enchanté,
Et le riche métal de notre volonté
Est tout vaporisé par ce savant chimiste.

C'est le Diable qui tient les fils qui nous remuent !
Aux objets répugnants nous trouvons des appas ;
Chaque jour vers l'Enfer nous descendons d'un pas,
Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent.

Ainsi qu'un débauché pauvre qui baise et mange
Le sein martyrisé d'une antique catin,
Nous volons au passage un plaisir clandestin
Que nous pressons bien fort comme une vieille orange.

Serré, fourmillant, comme un million d'helminthes,
Dans nos cerveaux ribote un peuple de Démons,
Et, quand nous respirons, la Mort dans nos poumons
Descend, fleuve invisible, avec de sourdes plaintes.

Si le viol, le poison, le poignard, l'incendie,
N'ont pas encor brodé de leurs plaisants dessins
Le canevas banal de nos piteux destins,
C'est que notre âme, hélas! n'est pas assez hardie.

Mais parmi les chacals, les panthères, les lices,
Les singes, les scorpions, les vautours, les serpents,
Les monstres glapissants, hurlants, grognants, rampants,
Dans la ménagerie infâme de nos vices,

II en est un plus laid, plus méchant, plus immonde !
Quoiqu'il ne pousse ni grands gestes ni grands cris,
Il ferait volontiers de la terre un débris
Et dans un bâillement avalerait le monde ;

C'est l'Ennui ! L'oeil chargé d'un pleur involontaire,
II rêve d'échafauds en fumant son houka.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,
- Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère !

Charles Baudelaire, Les Fleurs du mal

quarta-feira, 19 de março de 2014

EMMANUEL CARRÈRE: D'AUTRES VIES QUE LA MIENNE



Se os livros deviam ser lidos consoante os estados emocionais de quem lê, e se, tão importante como a busca de afinidades que nos conduzam a um autor, é o evitar precavido das afinidades na dor [podemos assim designá-las: o tema que nos fere, ou a narrativa que nos custa e se nos torna insuportável], então não posso recomendar esse texto - não lhe encontro melhor denominação - de ânimo leve a todas as pessoas.

Introduzida esta precaução, posso escrever que é um livro duro, simples, profundo e profundamente transformador. Não há qualquer contradição dos adjectivos entre si. Descobri-o numa entrevista a Paulo Varela Gomes, que o mencionava como um dos escritos mais surpreendentes e fortes que leu ultimamente.

A questão é a da morte. Carrère debruça-se sobre duas mortes; duas, confessa ele, das que mais medo lhe provocaram desde sempre: a de uma criança que morre a seus pais, e a de uma mãe que morre a seu homem e a seus filhos pequenos.

Nada liga estes dois momentos de perda, a não ser a proximidade no tempo e uma testemunha comum, precisamente o autor. Perguntamo-nos se tal articulação faz sentido, ou se cada uma destas experiências não teria constituído, por si mesma, um livro autónomo. Não pode, a primeira - narração da busca do corpo de uma filha tragada pela "vaga": um tsunami, ao tempo em que a palavra ainda não estava na moda -, não pode, a primeira, e na medida em que é uma descida ao centro do horror, impedir que se preste toda a atenção à outra estória? Seremos ainda, depois de uma, capazes de compreender e avaliar o grau de terribilidade da outra?

A segunda estória é sobre o cancro. A força do tema reside nisto, em que se descarte qualquer eufemismo. É, pois, também a reflexão pungente sobre como o doente olha e enfrenta o seu cancro: é um inimigo? um estrangeiro? um corpo estranho crescendo, invasora, transgressiva e abusivamente, no meu corpo? ou, pelo contrário, uma parte de mim, parte do que eu sou e, de algum modo, serei sempre, ainda quando o haja vencido?  

São, ao mesmo tempo, questões tão emotivas e tão íntimas, que algo como um despudor parece, por vezes, desprender-se daquelas páginas. Apesar do tom contido, directo, sem exibicionismo estilístico. É um testemunho que não se faz passar por romance. Não existem diálogos, mas a reconstituição daquilo a que o autor assistiu, ou a evocação das conversas através das quais procurou compreender aquelas pessoas.

E, no entanto, o romance está lá. Aquelas pessoas [quer tenham existido, quer não; quer se trate de um testemunho autêntico, ou o "testemunho" seja, tão-só, a forma de uma ficção: no fundo, que me importa, a mim, «hipocryte lecteur»?]  aquelas pessoas tornam-se personagens: para nós, leitores, nunca serão senão personagens. Se as vemos efectivamente, é porque o narrador as desenhou de maneira que as torna próximas e reconhecíveis, entre uma singularidade, que nos surpreende, e uma universalidade que no-las oferece, compreensíveis, nossas irmãs, como nós. São, quase todas, sínteses, paradoxais, de defeitos graciosos, perdoáveis, e de insuspeitadas heroicidades. Como só o finíssimo espírito de observação de um romancista poderia apreender e penetrar-lhes o significado íntimo. Atentem, por exemplo, em algo tão aparentemente irrelevante - e tão essencial, de facto - como este tique de personalidade de uma personagem:
«Sempre que alguém o interrompia, não para o contradizer mas para confirmar, completar, comentar o que ele dizia, sacudia a cabeça e murmurava que não, não era bem isso. A seguir, retomava a ideia, dizendo a mesma coisa com uma ínfima nuance. Penso, para argumentar como ele, que tem necessidade de não estar de acordo, para concordar com as pessoas

E se falava da heroicidade como a contrapartida da série de minúsculos defeitos que compõem uma personagem, não queria referir-me propriamente a alguma bravura ofuscante, aventureira, exibicionista. Pelo contrário: é a coragem que não adivinhamos, que não se vê de fora. A tal ponto, que podemos começar por nos perguntar - na verdade, não no-lo perguntamos, mas admita-se retoricamente a pergunta - o que têm estas pessoas de especial. Que há realmente de grandioso a escrever sobre elas? Ou, na formulação amargamente cómica de alguém, quando o autor o põe a par do seu projecto:

«Acho-te engraçado. És o único tipo, que eu conheço, capaz de pensar que a amizade de dois juízes coxos e cancerosos, mergulhados em dossiers de sobre-endividamento, num tribunal de pequena instância, é um tema de ouro. Para mais, não dormem juntos e, no fim, ela morre. Resumi bem? É isso a história? Confirmei: é isso

terça-feira, 11 de março de 2014

OSCAR WILDE: O RETRATO DE DORIAN GRAY



Compreendo a posição de João Gaspar Simões acerca de Oscar Wilde. Mencionei-a no post que dediquei a The Life of Samuel Johnson. Compreendo-a e, portanto, mais do que isso, usei-a; transplantei-a porque, a propósito de Johnson, ela faz todo o sentido; aplicada a Wilde, não o creio.

Gaspar Simões afirma que Wilde era um conversador de tipo raro, e nessa habilidade devemos procurar o seu talento e a sua arte. Não certamente - acrescenta - nos textos teóricos, acerca de Arte e estética, porque nunca foi capaz de elaborar um sistema coerente e consistente; as ideias são impressionistas, fulgurantes mas superficiais. Não também, com certeza, no romance:
O Retrato de Dorian Gray seria demasiado fantástico para que o pudéssemos ler com seriedade e convicção do princípio ao fim. Restaria o teatro - aí sim, encontramos o palco do seu génio de conversador, carregado de fórmulas felizes e de réplicas sagazes.

Ora não vejo, nesta crítica, um diagnóstico correcto da doença de Oscar Wilde; vejo, sim, um diagnóstico tenebroso da doença de João Gaspar Simões. A sua incapacidade para detectar a ironia. [Toda a teoria de Wilde contém um elemento irónico que não podemos desdenhar]; o gosto de JGS pela literalidade, no suposto de que só o realismo é arte, "falando-nos" do mundo e defendendo uma tese. O fantástico seria, pois, um desvario. Uma ausência de seriedade. Nesta óptica, a construção estética haveria de manter-se apenas como um instrumento ao serviço de uma mensagem. Uma retórica, portanto.

Tenho uma grande consideração pelo esteticismo. A ideia reguladora de todo o objecto artístico deveria ser a da Arte pela Arte. Não se trata de uma visão mesquinha e superficial da arte: é o princípio à luz do qual a obra contém um valor próprio e propriamente artístico. Poupem-me à conversa sobre os artistas nas suas torres de marfim: o esteticismo, tal como o entendo, não impede o artista de imbuir a sua arte de uma missão filosófica, social, política. Apenas impede que, enquanto arte, ela seja julgada, em primeira e última análise, por essa missão.

Assim, posso ver, em O Retrato de Dorian Gray, também um romance moral. [E pensando bem, toda a obra de Wilde, aliás.] Fala-se habitualmente dele como da recuperação do mito de Narciso. Um Narciso que encarna mais do que o egocentrismo: a maldade. Porque o mal é demasiado insuportável para que o descrevamos objectivamente, e não cabe nos limites de uma realidade registável, tem de ser apresentado sob a forma de um símbolo [a água, o espelho, o retrato] onde o sujeito se reflecte, e redescobre na sua verdade maléfica.

A realidade é ilusória. Engana-nos. O protagonista, um homem belo e jovem, muito popular em sociedade, mascara, na verdade, um ser perverso e hediondo. Esta sua natureza traduz-se em pérfidos actos, mas os maus actos não destroem a beleza do rosto do seu agente, o seu olhar inocente, o seu sorriso cativante. Não há, em Dorian Gray, sinais sensíveis da maldade. A não ser quando "magicamente" um elemento da realidade suporta e carrega todas as marcas do vício e da podridão, podendo revelar o que se esconde no interior do belo mau. Assim, estaríamos perante um narcisismo invertido: o reflexo não é uma ilusão nem o revelador de uma ilusão, é revelador da verdade.

O Retrato de Dorian Gray é inesquecível. Bem como a peça A Importância de se Chamar Ernesto [que volta daríamos ao título para que, em português, fizesse algum sentido? Sem ser - como em outra versão - A Importância de Ser Severo?]
São provas de um autor de génio, muito mais do que um grande conversador.     

   

segunda-feira, 3 de março de 2014

JAMES BOSWELL: THE LIFE OF SAMUEL JOHNSON



Não é que esta forma de contar uma vida seja, em si mesma, de uma absoluta originalidade. O seu modelo é Plutarco, que o biógrafo de Johnson, aliás, cita abundantemente, com a reverência de quem quer que lhe reconheçam a fonte a que foi beber. Não lhes importa tanto o registo de grandes feitos, mas o do gesto quotidiano, da anedota que não teve senão repercussões na intimidade familiar, ou de um grupo de amigos, das pequenas manias, das excentricidades. A encantadora tese que subjaz a um empreendimento deste género é a de que só conseguimos reencontrar o homem vivo, na descrição dos sinais da pessoa a sós, ou entre próximos, esquecida da necessidade de compor uma pose. Fora desta busca, arriscar-nos-íamos sempre a confundir uma biografia com um compêndio de marcos principais: as datas ilustres de uma vida, e não uma vida.

Deste ponto de vista, Samuel Johnson é o biografado que se ajusta. Tal como João Gaspar Simões escreveu, sobre Oscar Wilde, que o génio deste residia mais na arte de conversar, do que na escrita de uma obra [sendo que a melhor parte da sua obra é a que traduz esse talento para a conversa, ou seja: o teatro], também Johnson é um desses conversadores cuja vivacidade vicia os que o escutam, cujas ideias e formulações, aqui redescobertas, temos pena de não ter podido ouvir de viva voz, cujo capacidade para prender o interesse do interlocutor é uma arte. "Verve" traduz insuficientemente este dom do uso engenhoso e divertido das palavras, esse peculiar tipo de espírito que os ingleses designam por "wit", e não faltaria a Samuel Johnson.

A biografia escrita por Boswell é um testemunho deste fascínio pelo conversador e pelo contador de estórias; há qualquer coisa de uma paixão e de um erotismo platónicos nessa devoção. Estavam, de resto, reunidas as condições perfeitas: Boswell privou com Samuel Johnson durante cerca de 20 anos que nenhuma outra convivência poderia superar ou empalidecer. Meu primo - que me falou entusiasticamente, e mais de uma vez, da obra em causa - dizia-me conseguir quase ver Boswell com uma atenção fremente à mais irrelevante frase de Johnson, apontando-as todas, assim que pudesse, e revendo-as, à noite, já a sós, deleitando-se com elas e suspirando de prazer ante a ideia de vir a imortalizá-las.

Boswell não se limitou ao que Johnson contava sobre si mesmo, e acerca da sua infância ou adolescência: procurou junto dos antigos professores, de companheiros ou familiares; guardou amoro
samente poemas ou trabalhos académicos que lhe confiavam: as traduções que o Doutor Johnson fizera, do latim ou para latim, as breves dissertações. Guardou cartas, memorandos, rascunhos. Ouviu anedotas, memórias, opiniões. E deste monumento inigualável [bem! falo de 900 e muitas páginas] resulta um retrato com movimento, sobressaltos, sangue e odores. Não, porém, e ao contrário do que se esperaria de um tal conversador, o de um génio intimamente reconciliado com a sua luz, mas uma personalidade atormentada, e perdida muitas vezes nos subterrâneos meandros da sua sublime obscuridade interior: a melancolia, a abulia, que lhe impede um trabalho de fôlego sistemático e lhe impede um estudo aplicado [a ele, que tudo e tanto gosta de ler], a irascibilidade, ou a terrível hipocondria. [Não a medíocre hipocondria que nos cabe a todos, mas a aterradora, contínua e paranóica identificação de sintomas maléficos. Suponho que os génios até na neurose devam ser excessivos; e presumo que, em última análise - aliás, Johnson di-lo -, o seu prazer pela conversa, o seu humor, o seu espírito, mais não fossem do que o lenitivo passageiro, e mais adequado à sua natureza, ou a pontual alienação do seu tortuoso padecimento interior.]          

Boswell não seria Boswell se nunca se houvesse cruzado com o que se tornaria o seu biografado; e Samuel Johnson não seria o Doutor Samuel Johnson a que nós tivemos direito, se não encontrasse o seu Boswell. Claro que ambos o sabiam: eles trabalhavam para a posteridade. Construiram-se mutuamente: e essa mútua construção consubstancia-se numa biografia como não creio que fosse possível realizar-se uma outra, sequer próxima.