quarta-feira, 28 de maio de 2014

DANIEL PENNAC: COMO UM ROMANCE



Posso ensinar a ler; e, ao longo dos anos, tentei ajudar a que os leitores que vou formando, meus filhos ou meus alunos, adquirissem - peço perdão pela palavra feia - «competências» de leitura; como se manobra um texto, como se reconhece a estrutura, sintáctica, ou semanticamente. Nada disto tem que ver com o gosto pela leitura.

Todos nós sabemos em que medida um trabalho burocrático sobre um texto nos afugenta dele. A abordagem gramatical de Os Lusíadas afastou-me por muitos anos de Camões; Cesário Verde, estudado sem fogo e sem curiosidade, parecia-me um repórter de trivialidades em rima, não um autêntico poeta.

O que não significa, por outro lado, que a escola não deva e não consiga ser uma educadora de leitores. Os Maias foi descoberto nas aulas de português, e pressentido por mim, desde o primeiro momento do corpo a corpo, como um objecto pouco banal de prazer, um teatro de humor, empatia, dor e melancolia. Entre colegas, fora das aulas, relembrávamos os episódios que nos tinham divertido ou as personagens que preferíamos.

Não é tanto este reconhecimento de que [salvaguardadas as benfazejas excepções] é fácil, e até vulgar, a escola matar o prazer da leitura, o que me parece original no livro de Pennac. O melhor é a visão desregrada que oferece, literalmente, questionando com ousadia as teorias de quantos se consideram leitores de eleição. O melhor é a destruição minuciosa de uma série de afirmações que nós próprios tenderíamos a considerar evidentes, a tal ponto se disseminaram entre as pessoas «cultas»: os perigos da televisão, ai ai, a forma como desvia potenciais leitores, propondo-lhes narrativas visuais, que recebemos passivamente - não é verdade! -, ou a clássica distinção entre «maus livros» (que deveríamos evitar que caíssem na alçada dos adolescentes) e «bons livros» (que há que impor-lhes), para mencionar dois exemplos.


O prazer da leitura não é de origem complexa ou enigmática. Começa sempre por que se oiça ler em voz alta. Ponto. Os
grandes educadores do gosto são os professores que, numa primeira fase, prescindem da preocupação com os programas ou enquadramentos. São os que despejam em cima da secretária, de uma sacola, entre chaves e canetas, dois ou três livros, abrem um e iniciam a partilha de uma viagem. Os seus predecessores são os pais que lêem ou contam histórias aos filhos.

Nas regras - célebres - que Pennac propõe para a relação do leitor com os livros, procura sempre aliviar a culpabilidade, desmantelar uma certa ideia de erro ou de pecado por se não estar sendo um «leitor correcto». A tudo o que se diz, habitualmente, que se não deve fazer [ler maus livros, não ler um livro até ao fim, etc.], Pennac retorque com um simples «E por que não?» Uma relação de prazer não pode depender de uma estratégia adequada, ou de uma moral constrangedora.

Identifico-me com a veia anarquizante que pulsa neste livro. A mensagem é simples. Os bons leitores são os que lêem o que bem entendem, quando, onde e como entendam bem.

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