segunda-feira, 20 de julho de 2015

JOSÉ CARDOSO PIRES: O ANJO ANCORADO



Relendo, muitos anos volvidos, O Anjo Ancorado, de Cardoso Pires, sinto-me hoje muito mais impressionado do que da primeira vez.
Sondando os que sobre ele escreveram, de um citadíssimo Pinheiro Torres, a Tabucchi ou, agora, a Mário de Carvalho, torno a ficar impressionado, mas aqui pela negativa. Este léxico de lugares-comuns acerca
 de Cardoso Pires, que se foi apurando ao longo dos anos, e insiste em falar na sua linguagem «despojada» (à imagem, diz-se muito também, dos norte-americanos) deixa-me de cabeça perdida. Ou esta ideia de uma falsa limpidez, uma metódica e clara construção narrativa que oculta os seus segredos técnicos, os seus andaimes, o seu aparato.
Primo: não há qualquer secura. Se há prosa luxuriante é a de José Cardoso Pires: tudo é a perfeição das mais refinadas figuras de estilo; pedidos de empréstimo à linguagem popular; achados que ficam a reverberar no espírito do leitor. Se querem dizer que não há "excesso", digam-no; que se evita a pirotecnia fácil, de acordo. Agora não falem de "despojamento" a propósito de um texto onda não existe praticamente um período que não seja de uma notável e complexa originalidade, e que apela constantemente para uma releitura da beleza que nos marcou.
Secundo: não é uma escrita que esconde todas as artimanhas, como um mágico bem-sucedido, como a tranquila superfície onde nenhuma técnica se dá a ver. Tem, pelo contrário, uma série de erros de construção, aliás tão bonitos que pareceriam deliberados - mas tem, e dou um exemplo óbvio: remissões forçadas,
para, quando por exemplo se fala de João, se completar a imagem da personagem.

Posto isto, a novela, a que Cardoso Pires chama "romance", é magnífica. A história é de uma cativante simplicidade. As conversas entre intelectuais (o casal, os grupos) servem para  reconstituir uma época e a sua atmosfera específica. Mas entre essas reflexões que se estendem por diálogos (e não há quem não sublinhe a vivacidade e a autenticidade desses diálogos, uma vez mais: tipicamente norte-americana) desliza uma trama tão linear, no melhor dos sentidos, tão encantadora, tão clara, que fechamos a última página num silêncio que preferíamos manter.

José Cardoso Pires fala, algures, de O Anjo Ancorado como uma fábula. É o mot juste. Dois mundos e, portanto, dois tipos sociais, o dos intelectuais burgueses [João ainda vagamente progressista, apesar do desencanto] confrontando-se com os diversos tipos de povo - «confrontando-se» apesar de, teoricamente, não estar contra «aquela gente», bem pelo contrário; povo sofredor mas astucioso: imaginemos, transposto para o mundo humano, uma ave colorida e rica, ou seja, uma ave burguesa, e uma pobre e velha raposa.

A caracterização é de uma acutilância exímia. O que parece um traço rápido, de sketch, apenas dois ou três pormenores, revela-se na verdade de um enorme poder de evocação físico, psicológico e social. O garoto com o casaco de adulto, que lhe dá pelos joelhos, é um exemplo de como um detalhe essencial mostra mais do que um tratado. E ninguém como Cardoso Pires para percebermos que, muitas vezes, é no subtil pormenor que se distingue, da outra, a literatura maior.