sábado, 31 de dezembro de 2016

QUE ESTE VENHA A SER O ANO QUE SEMPRE QUISERAM


Espanta-me um pouco que os meus posts tenham tantos leitores; não o digo com vaidade, realmente apenas com surpresa. O meu mais lido de sempre, sobre O Retorno, vai em quase 3 milhares de acessos.

Espanta-me também que, com tantos leitores, este blogue tenha tão poucos seguidores. 93, nem mais um. Não o digo como lamúria, apenas - uma vez mais - com surpresa.

A todos, os que são seguidores e me lêem, os que são seguidores e não me lêem [espero que os não haja: de resto, como leriam esta mensagem?], os que me lêem mas não se tornam seguidores, os meus votos de um excelente 2017. Com momentos fantásticos proporcionados pela leitura. Mas também com fantásticos momentos entre leituras.

Obrigado pela paciência.

JOHN RUSKIN TRADUZIDO POR MARCEL PROUST: LA BIBLE d'AMIENS


John Ruskin era um excêntrico. Mas há muito que procuro lê-lo na íntegra, cativado por aquelas passagens, de que achei citações, em que perora contra o progresso tecnológico; pelo olho sensível com que se apercebeu da importância dos pré-rafaelitas e pela divulgação que fez da obra destes; pela influência que exerceu desde cedo sobre Marcel Proust, o nec plus ultra da literatura no meu cânone pessoal; e porque o meu primo mo aconselhou diversas vezes, sobretudo a propósito dos seus geniais vislumbres sobre Veneza.

Foi, obviamente, meu primo quem me ofereceu La Bible d'Amiens: a visão (como chamar-lhe de outra forma?) que Ruskin teve da cidade e, no coração da cidade, da sua sublime catedral. Mas, mais do que o acesso ao texto inteligente e profundo de Ruskin, tive-o numa tradução do próprio Proust, que principia por nos apresentar a obra e o autor.

É Proust, aliás, quem nos explica em que sentido devemos interpretar a escolha da palavra «Bíblia» no título. A Bíblia de Amiens é o pórtico ocidental da catedral, uma bíblia no sentido próprio e não figurado, uma «bíblia de pedra»: «esse mundo de santos, essas gerações de profetas, esse séquito de apóstolos, esse povo de reis, esse desfile de pecadores, essa assembleia de juízes, esse esvoaçar de anjos, uns ao lado dos outros, uns em cima dos outros» [Caramba! que maravilha.]

No seu prefácio, Proust abre-nos o universo do mestre: faz a ligação, que o leitor deleitado agradece, entre diferentes obras de Ruskin, tão erudito que raramente se repete de texto para texto, mesmo quando o que já referiu em algum, viria tão a propósito em outro, como ilustração do que está tentando sustentar agora. Percebemos a admiração, o êxtase. Percebemos tudo quanto Marcel Proust reconhece dever a Ruskin: mais do que ideias, conhecimentos, experiências (tanto de leitura como de peregrinação aos lugares mencionados), também uma certa forma de dirigir o olhar e, sem dúvida, uma sensibilidade própria na escrita. Mas Proust não é o discípulo cego - ele distancia-se, intui os erros e expõe-no-los com a sua perspicácia.
«Não é que eu desconheça as virtudes do respeito, é mesmo a própria condição do amor. Mas nunca ele deve, quando cessa o amor, substituir-se-lhe, para permitir-nos crer sem exame ou admirar por confiança,»

O desvio sistemático que Proust identifica em Ruskin, a sua «parte frágil», é a «idolatria». Curioso termo para designar um crítico cristão. Chamar-lhe-íamos «fetichismo», não fosse a conotação que a palavra veio ganhando. Em síntese: o Belo é uma via para a verdade; John Ruskin busca, na beleza das obras cristãs, uma expressão da presença de Deus. Porém, de tal modo a coisa bela emana a verdade, que é como se a contivesse, a encarnasse. A partir de então, objectivamente, não a vemos já como símbolo do que devemos adorar, mas como o que é adorável por si mesmo.

Todavia, até «a parte frágil» devém encantadora. Em Ruskin, segundo Proust, ou nas singulares formulações em que aquele capta as coisas de que nos fala, encontramos uma elevada beleza, e essa beleza, por vezes ambígua e desconfortável para o leitor, toma uma autonomia própria ainda que o que ele afirma deslize para a «idolatria», ou que não seja factualmente verdadeiro. É sempre uma interpretação que nos atinge, nos delicia, mesmo que não creiamos nela e não possamos aderir ao seu conteúdo. Um exemplo, dado por Proust, desse desconforto ante o erro apresentado numa formulação muito bela: «Não é menos certo que essa passagem de Pedras de Veneza é de uma grande beleza, ainda que seja muito difícil compreender as razões dessa beleza. Ela parece-nos repousar sobre algo de falso e temos algum escrúpulo em deixar-nos arrastar

Posto isto, o poder de Ruskin é assombroso. E multímodo. Pessoalmente, atribuo à palavra «Bíblia», aqui, um sentido diferente, sabendo que nunca esteve no espírito da escolha de Ruskin: o seu livro acerca desta catedral deve ser visto como uma Bíblia de Amiens. Diante dos nossos olhos estupefactos reconstitui-se a cidade desde os seus primórdios, e vão-se redepositando as sucessivas camadas históricas e culturais que, num dado momento, a cristalizaram como uma cidade de águas, qual Veneza. Ruskin narra os episódios da formação de França a partir de Amiens, e a origem, a originalidade e a expansão do seu cristianismo. Nada é irrelevante: somos o «viajante inglês inteligente» que observa, pela janela do comboio, as 50 chaminés, de entre as quais sobressai uma, que não lança fumo, e é uma flecha em direcção aos céus; lembra Saint Firmin, que introduziu a fé num povo pagão, sob a ocupação romana, mas ensinado por Druidas; conta episódios históricos, ou mitos, ou meras mas saborosas lendas populares sobre Clodion, Mérovée ,Childéric, e sobre Clovis e Clotilde, reis dos Francos. Apresenta-nos caminhos alternativos para nos aproximarmos da catedral, consoante o tempo de que disponhamos, ou o estado atmosférico do dia. Por todos os poros da sua escrita magnífica e exaltada, sentimos a atenção ao pormenor e a capacidade de resgatar ao esquecimento algum detalhe em que porventura não repararíamos. Proust evoca um episódio revelador: Ruskin destaca, algures, uma das figuras minúsculas dispostas junto ao portal das Livrarias na catedral de Rouen; descreve-a com uma delicadeza e um charme inesquecíveis. Marcel Proust foi, um dia, visitar a catedral, que aliás já conhecia, em busca dessa figura. Pareceria impossível detectá-la: são centenas de criaturas de poucos centímetros. E, porém, reconheceu-a - Ruskin oferecera-lhe, de algum modo, a imortalidade, arrancando-a a centenas de peças que se confundiriam, quase semelhantes, numa massa anónima; interessara-se por aquela, como se dissesse: é esta, ei-la!, e concedeu-lhe vida, extraindo-a do nada.  

Um dia, terei de visitar Amiens, com a Bíblia nas mãos.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

ARTHUR MILLER: FOCUS


Hesito na confidência que não há-de abonar a meu favor: mas quando me falaram acerca de Focus, de Miller, parti imediatamente do princípio que se tratava de um romance da autoria de «Henry» Miller, o qual, ainda para mais, escreveu vários com títulos de idêntica terminação latina, como Nexus ou Sexus. Foi, portanto, já no momento em que o encomendava, que se desfez o ridículo equívoco - era Arthur Miller, que a minha ignorância não reconhecia senão como dramaturgo, o autor do célebre Morte de um Caixeiro Viajante.

É um romance que tem por tema a identidade. Como na obra de Pirandello, onde, frequentemente, um pormenor físico (por exemplo, o nariz que pende para o lado direito) é suficiente para transformar certa personagem e, transformando-a, alterar o modo como os demais a percepcionam, também o entrecho de Focus assenta no facto de Mr. Newman começar a usar uns óculos que, por alguma estranha e súbita razão, mudam não apenas a sua fisionomia, mas, digamos, a essência da sua fisionomia: Newman, que não é judeu, começa a ser visto como um judeu.


Este ensaio (chamemos-lhe assim, apesar de ser uma obra de ficção) sobre a identidade, e sobre o que faz uma identidade, ou acerca das características mínimas que configuram a maneira como nos olham, e como nós próprios passamos a olhar-nos, é brilhantemente conseguido. O romance vive de uma estrutura eficaz na forma como joga com os equívocos. Apreciem, por exemplo, o modo como o protagonista descobre que não terá, afinal, quaisquer possibilidades num emprego para que se candidatara, e cuja empresa ele acreditava, durante muito tempo confiante, que o chamaria.

 Newman, que, repito, não só não era judeu mas, acrescento, até um anti-semita - alimentando um anti-semitismo não violento, uma repelência visceral em relação ao "outro" - vai viver situações em que se tornou, ele, o alvo do desprezo, do desrespeito, do afastamento dos amigos e vizinhos, despromoção, despedimento.

À época, anterior à intervenção dos EUA na Grande Guerra, estamos perante uma América profundamente anti-semita, em que se assiste a uma "limpeza" dos bairros, e os vizinhos não-arianos se vêem insistentemente pressionados a mudar; onde, nos trabalhos de atendimento ao público, se faz questão de que não sejam visíveis pessoas de "aspecto judaizante"; onde pregadores e associações de cariz nazi atraem a si fanáticos unidos no ódio ao outro. Mas o que é o outro, o que faz do outro um outro, sendo os EUA uma nação que se criou e recriou integrando fluxos de novos imigrantes em busca de um sonho? O que faz do outro um outro num país que foi sempre um mosaico heterogéneo?

O romance falaria por si, sem proselitismo, sem explicações suplementares. A passagem escusada seria, pois, aquela, já nos derradeiros capítulos, em que o judeu do bairro argumenta com Mr. Newman, de forma a, indirectamente, se esclarecer o leitor sobre a lição a retirar. Espanta, até, que Miller, numa narrativa em que tudo funciona tão subtil e subliminarmente, tenha sentido necessidade dessa explicitação do seu ponto de vista. Mas o próprio facto de percebermos que esse episódio é inútil, mostra até que ponto Focus, mais do que o texto didáctico e político que, necessariamente, também é, importa e vale literariamente, como uma obra de arte maior.     


sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

DOMINGOS AMARAL NA TV


Houve um tempo em que os "intelectuais", por razões de compromisso ético, viam a intervenção pública como um imperativo. Eram entrevistados, vinham à televisão, falavam em comícios. Acrescentavam o microfone e o megafone à pena. O homem ser estrábico, roufenho ou gago, devinha irrelevante em face deste seu dever político ou cívico. Os "intelectuais" eram engagés. Viam-nos e ouviam-nos porque a sua voz física, ainda que entaramelada, exprimia uma posição.

Há-os, ainda. Escritores que pensam que o seu estatuto lhes confere um suplemento ideológico. Os candidatos à presidência convidam-nos, os partidos convocam-nos. Mas existe, cada vez mais, outra coisa, também.

A «outra coisa» consiste em escritores que evoluem (ou degradam) para comentadores. Não por terem uma posição cívica a defender, mas porque sim. Ou que evoluem (degradam) para personalidades-residentes em programas de política, cultura e/ou entretenimento. Se nada tenho a opor à ideia por princípio, se reconheço até que alguns literatos são excelentes comunicadores (vale sempre a pena escutar Clara Ferreira Alves, por exemplo, e Pedro Mexia tem wit), devo acrescentar que outros há que se não percebe ao que vão. Ou por outra, percebe-se: dará sempre jeito acrescentar uns tostões à mesada. Mas não deviam preocupar-se com a sua imagem? Não seria de pensar duas vezes antes de se aceitar um convite? Verificar se têm talento para aparecer no pequeno ecrã, se falam bem em público, se não fazem tristes figuras? Lá dizia o Salazar, que, ao menos nisso, via longe: Isto da televisão é um teste decisivo para os políticos: poucos lhe sobreviverão... Bem, pois para os "intelectuais" também.

Desagrada-me cair  numa argumentação ad hominem, mas, caramba! Domingos Amaral, que é um romancista que se lê com certo gosto e algum proveito, tem aceitado ir falar de futebol num programa, das suas irritações em outro, de não sei que mais em não sei onde mais. O homem vai a todas e, sinceramente, não devia. Porque se atrapalha, é pouco claro, se fixa em duas ou três ideias que não relaciona nem desenvolve, porque não consegue argumentar. Vê-lo no último Irritações explicar a diferença entre Fidel Castro, um «filho da puta genial», como lhe chamou, e outros ditadores, tornou-se um exercício penoso. Nem sequer por razões ideológicas, mas porque não se percebia o que diacho queria dizer e onde queria aportar, numa salgalhada em que já considerava que «Hitler nos fascina mais do que Estaline», sem entendermos em que aspecto é que isso valorizaria ou desvalorizaria Fidel.

Mesmo admitindo que há gostos para tudo, talvez as pessoas, sobretudo as que são boas em certos meios, devessem fugir daqueles outros meios que só revelam o seu lado pior.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

AQUILINO RIBEIRO: A CASA GRANDE DE ROMARIGÃES



Os clássicos portugueses não são lidos. Porventura Eça e Saramago porque eram - ou foram até há pouco... - obrigatórios no ensino secundário (e ainda há quem se atreva a considerar que a "obrigatoriedade" afugenta...); talvez agora Camilo, novamente.
Mas de todos os que não são lidos, alguns há que não são lidos ainda com mais força, porque os tomam por particularmente chatos, ou seja, difíceis, indigestos, incompreensíveis. Já nem me refiro a Herculano. Mas a Aquilino Ribeiro, mas a Agustina.

Uma plêiade de intelectuais (designando-os deste modo, dir-se-ia que ironizo, mas são pessoas que estimo) foi chamada a escolher as 12 melhores obras da literatura portuguesa dos últimos 100 anos. Uma delas seria, na óptica de todos os jurados, A Casa Grande de Romarigães. E tanto me bastou para caçar e reler a minha velha - e quase esquecida - edição.

Consta que Salazar afirmava que, sim senhor, Aquilino Ribeiro seria um homem da oposição. Mas, caramba! como escrevia bem. "Escrever bem" significa, neste caso, procurar uma linguagem própria, originalíssima, em cuja génese se cruzam o português mais culto e recalcado e um português popular, pejado de regionalismos. É assombroso: caminhamos pelo texto com o vagar de quem dá passos sobre uma lâmina fina de gelo, ou como quem se aventura na compreensão de uma língua estudada, conhecida, mas pouco familiar. Na verdade, não faz falta um glossário: à medida que penetramos no sentido e ganhamos segurança, as frases mais rebuscadas devêm de uma clareza perfeita, luminosa. Sob a aparente obscuridade abrem-se cursos frescos, e a experiência torna-se cada vez mais fonte de prazer. Lendo outras obras, mais fáceis, de outros autores - um policial, por exemplo - é de certa forma como se as lêssemos mecanicamente, enquanto, ao mesmo tempo, pensamos em assuntos diversos, devaneando para tornarmos a prestar atenção ao fim da frase, sem que o essencial nos haja escapado. Aqui não. A concentração deve ser total. O texto deixa que nos banhemos nele, bem entendido, mas não podemos dispersar-nos por um instante, nem atender o telefone ao mesmo tempo, nem seguir com um olho distraído e simultâneo os anúncios da televisão. Aquilino obriga a uma reaprendizagem da leitura: como Herculano ou Agustina, de resto.

A casa grande de Romarigães é o único nó. Assistimos ao modo como ela é erguida para habitação de «um licenciado», num campo luxuriante, campo esse cujo aparecimento (descrito com tão poética minúcia, e tanta beleza) por sua vez já constituíra o modelo do próprio romance de Aquilino Ribeiro: uma bolota aqui, outra ali, o trabalho sem propósito de uma ave, de outra ave, do vento, da chuva, do tempo, e eis por fim um arvoredo a perder de vista. Também este romance vai lançando sementes, umas breves, outras mais demoradas, que são as vidas de personagens de que nascem filhos que terão filhos; no início, o «licenciado», um padre, procriou: mal nos precavemos e já estamos perante a floresta, isto é, uma família de que, geração após geração, se multiplicam histórias de amor e rivalidade com os vizinhos, trabalho, preguiça, desperdício, no chão comum que é a casa, único e sólido enraizamento de uma genealogia que se desenvolve nos séculos, e de que somos testemunhas.  

Ao longo de gerações sucessivas de proprietários, o que se nos vai contando é a História portuguesa desde o tempo da presença espanhola. A casa grande é Portugal, no sentido em que a ilustre casa de Ramires é Portugal, apresentando as escolhas de campo, as lutas fratricidas, as geniais cobardias, os desleixos e as perfeitas coragens, numa súmula de defeitos que não somos capazes de odiar (nem porventura corrigir) e de virtudes que não pululam em todos os povos.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

GEORG LUCÁKS: HISTÓRIA E CONSCIÊNCIA DE CLASSE




                                          «Willi - Pois sim, talvez sejam crimes, não sabemos nada disso. O nosso dever é o de confiar, com os olhos fechados, porque não nos cabe fazer outra coisa, nem a si nem a mim. Acusar, protestar, nunca é mais do que servir o inimigo. Prefiro ser fuzilado por engano. Nem os crimes nem os enganos alteram o nosso dever
                                                   
                                                                                Victor Serge, O Caso Tulaev


A última frase do meu mais recente post, neste blogue, recordou-me a influência que Lukács tivera na direcção do meu pensar.

Resumamos o processo. No início dos tempos, reconheci-me anti-marxista. Identificando o marxismo com o fundamento teórico do país nascente em que eu então vivia, vi naquele o responsável por um regime que cortava a direito e, em nome da classe, ou do povo, se tornava frequentemente insensível e obtuso.

Foi, paradoxalmente, retornando, ou seja, regressando a Portugal, que principiei a ler verdadeiramente textos de Marx e de Lenine; a minha juventude portuguesa tornou-me, pois, marxista: o Manifesto Comunista soou-me bem, os Escritos Económico-filosóficos ainda melhor. Na senda desta paradoxal recém-conversão ("paradoxal" se recordarmos que eu começara por experimentar o marxismo na pele, na prática, e dele me escapulira) li Trotski, Rosa Luxemburgo e Lucáks.

História e Consciência de Classe foi uma revelação. Sob o jargão típico, as formulações clássicas do marxismo, que me arrepiavam ainda, apesar de tudo, e a que Lucáks não fugia, intuí todavia uma força maior, um movimento intelectual poderoso, uma reflexão que rompia as cordas de um pensamento unidimensional. Então, ainda me não familiarizara com a filosofia de Hegel, e portanto não possuía instrumentos para apreender o idealismo hegeliano como a corrente que subterraneamente informava o pensar de Lucáks.

Esta obra seria a minha porta para a descoberta, mais tarde, de Lucien Goldmann e da sua óptica marxista e estruturalista sobre os romances: aí dava-se-me a ver como a "mentalidade" das personagens (sem que, por isso, estas perdessem uma individualidade complexa e contraditória) representa, apesar da esperável refracção, uma posição de classe: pelo que um romance permite sempre a leitura das diferentes forças sociais na sua relação, na sua ascensão, na sua hegemonia, na sua decadência; seria, pois, o recorte de uma história das mentalidades, e esta, por sua vez, a tentativa de compreender como a visão de cada indivíduo é a expressão, na sociedade, da classe em que ele se forma; em suma: os interesses individuais como a cristalização no particular de interesses de classe. Este estruturalismo, antes de se transformar numa chave redutora - e transforma-se sempre numa chave redutora: já era a tese que apresentava no anterior post -  começa por ser um instrumento de leitura com a sua riqueza e as suas virtualidades.

Entretanto, tive conhecimento das dificuldades de Lucáks perante a consolidação do estalinismo. A crítica que o próprio fez do seu História e Consciência de Classe como obra idealista. (O que é objectivamente correcto, mas não tem de se tratar como um erro). A aceitação de lugares que implicavam a crítica de desvios de escritores e intelectuais, muitos dos quais acabaram presos e liquidados.

A pergunta, que tanto se dirigiria a Lucáks como a toda uma elite de pensadores marxistas de um quilate superior, é sempre a mesma. Porque calaram as suas vozes maduras e informadas? Porque recuaram relativamente ao próprio pensamento, que era mais profundo e promissor do que o dos líderes que eles serviam? A resposta nunca poderia ser: falta de coragem. Basta ler-se O Caso Tulaev, de Victor Serge, ou O Zero e o Infinito, de Koestler, para se compreender o dilema dessas almas torturadas, esses intelectuais para quem Estaline e a URSS, por injustos que se mostrassem em certos aspectos ou em dado momento histórico, continuavam, no essencial, sendo vistos como a força e o movimento correctos da História, do progresso e da libertação dos oprimidos; não poderiam ser criticados sem se estar a trair o proletariado e a dar cartas aos inimigos da revolução. Esta é a tragédia. A tragédia sofrida no cerne das suas consciências. A causa da ambiguidade. De silêncios cúmplices. De auto-críticas incompreensíveis. Aterrador.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

E.M. FORSTER: HOWARDS END


                                                                                                         

                                                                                        «Ligar, apenas...»




O romance abre com a apresentação de algumas cartas de Helen, que se encontra por algum tempo em Howards End, destinadas a sua irmã, Margaret. É um exemplo feliz de concisão dramática. Na economia da forma epistolar se faz a descrição da casa em que Helen é hóspede dos Wilcox; uma referência superficial a estes; e se adverte a destinatária, na última delas, bruscamente e sem explicações, de uma paixão: Helen apaixonara-se pelo jovem Wilcox, acabado de chegar.

O capítulo II mantém a sugestão da surpreendente paixão. O diálogo entre Margaret e a tia sobre o que fazer (ignorando que, com a mesma rapidez com que tivera início, a paixão já findara) é um elemento magistral na informação ao leitor; na revelação destas duas personagens; do choque amistoso e preocupado entre os caracteres; mas, principalmente, na arte de nos cativar e introduzir no seu mundo - trata-se, aliás, de um mundo que estremece perante os atractivos de um outro mundo, o dos Wilcox, evidentemente, e da sua peculiar mansão. Sentimos a respiração da intriga sobre o nosso pescoço. A tia parte para socorrer a jovem Helen, sem saber de um telegrama, que entretanto chegava, anunciando o fim do amor e a inutilidade do socorro da tia Juley.

O capítulo seguinte é ainda extraordinário (e delicioso) por causa do bailado de equívocos suscitados pelo inesperado encontro da tia, na estação, com o irmão mais velho do jovem apaixonado entrementes desapaixonado.

Não senhor: a ideia não é apresentar-vos uma leitura capítulo a capítulo; usei esta sequência para mostrar como, artística mas também tecnicamente, Howards End é um romance modelar.

Há uma ironia muito britânica no filtro através de que se descreve cada personagem; o reconhecimento do elemento ridículo, que é, ao mesmo tempo, a detecção de uma vulnerável inocência. Enternece-me esta passagem:

« - Desculpe - disse o jovem ao lado de Margaret, que há um bom bocado preparava uma frase -, mas essa senhora levou, inadvertidamente, o meu guarda-chuva.
- Oh meu Deus! Peço imensa desculpa [...]
- Não tem importância nenhuma - disse o jovem, na realidade muito preocupado com o seu guarda-chuva.» 

E mais adiante, quando começamos a compreender melhor a sua obsessão: 

«Oh, adquirir cultura! Oh, pronunciar correctamente os nomes estrangeiros! Oh, estar bem informado, discorrer com facilidade sobre cada assunto aflorado por uma senhora! Mas seriam precisos anos. [...] O seu cérebro podia estar repleto de nomes, podia até ter ouvido falar de Monet e Debussy; o problema estava em que não conseguia reuni-los numa frase, não sabia como "fazê-los falar", não conseguia esquecer totalmente o guarda-chuva roubado. [...] "Espero que o meu guarda-chuva esteja a salvo", pensava. "Na verdade, isso não me interessa. Vou concentrar-me na música. Espero que o meu guarda-chuva esteja a salvo."»

Este jovem, «subalimentado, tanto física como espiritualmente», que tão espantosamente nos recorda o «auto-didacta», de La Nausée, é uma peça essencial: o que ele inveja nas irmãs Schlegel é precisamente o tu-cá-tu-lá com uma sofisticação espiritual em que parecem já ter nascido. Helen e Margaret são fruidoras de Arte: sabem apreciar o que escutam, sem ter de pensar no guarda-chuva ou no que vão comer. Têm ideias fortes. Discutem-nas, semeando a sua tagarelice de ângulos filosóficos, paradoxos, cinismos requintados.
O que fazer com este rapaz e as suas aspirações? Como ajudá-lo a evoluir (sem o diminuir, e sem, até, que ele se aperceba)? É perante esta pergunta, por um lado, e, por outro lado, perante esta: que fazer de Howards End, agora que a sua figura tutelar, Mrs. Wilcox, já não pertence a este mundo?, é perante estas duas perguntas, escrevia eu, estes dois motes, que tornam a cruzar-se, anos volvidos, as meninas Schlegel e a família Wilcox, ainda proprietária da mansão.

Porque se quer auxiliar o auto-didacta cândido, e preservar o espírito de Howards End? Temo que a primeira tentação seja a de nos entregarmos a uma leitura política sobre a Inglaterra e as suas classes sociais. É, sem dúvida, uma chave, a que aliás, numa breve introdução, João Guardado Moreira, o tradutor - excelente - oferece o devido relevo; mas se uma chave de leitura evidencia aspectos que, sem ela, permaneceriam por descobrir, tenhamos cuidado com os que, em contrapartida, remete para a sombra.

Parece-me mais interessante - mas, a limite, igualmente redutor - o combate surdo entre a atitude intelectual e a atitude prática, os poetas, se quisermos, e os empreendedores, ou uma riqueza idealista, romântica e sonhadora [a das meninas Schlegel] e uma riqueza de pés bem assentes no chão, sem aura nem filosofia [a de Mister Wilcox, a da família Wilcox]; ou, e esta é a mais promissora das hipóteses, entre os espíritos que tudo ligam numa vasta dispersão, e aqueles que se concentram; é entre estes dois planetas que só podem atrair-se para, eventualmente, colidir, que perpassa Mr. Bast, o auto-didacta, com as suas citações despropositadas, as suas referências mal digeridas e uma desconfiança à flor da pele.

Estas personagens, na sua diversificação social e cultural, e de objectivos e de expectativas, genialmente captados e reconstituídos no romance, propiciam uma sucessão de encontros, mas sobretudo desencontros, equívocos, erros e escolhas, em que lemos também as razões íntimas, singulares, do apogeu e declínio do Império Britânico. Esse poder sempre me impressionou, num romancista: revelar na história particular de um microcosmo, a realidade de toda uma época, uma sociedade, um império.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

VERGÍLIO FERREIRA: APARIÇÃO


Relendo este maravilhoso romance que encontrei, na minha estante, numa bem conservada edição da Bertrand, de 2000, deixo que as páginas me vão devolvendo as personagens - Alberto, o narrador, professor de liceu, a misteriosa Sofia, Ana, Cristina, todas filhas do Dr. Moura, Alfredo, Chico, o Bexiguinha - que, convivendo, dando-se, relacionando-se, em espaços ritualizados, como a casa da família, a pensão do sr. Machado, o liceu, os cafés, a praça, Évora, enfim, estão sempre em face da possibilidade de uma revelação: esse elemento que escapa a todos os rituais, que escapa ao empedernido das relações, e das frases feitas, dos gestos feitos, que escapa à rede de hábitos em que nos instalamos, como se neles pudéssemos descobrir-nos e tocar-nos, a nós e aos outros, sem espanto nem mistério.

É, pois, o tema caro ao existencialismo, que Vergílio Ferreira tão bem reinventou em português, para irritação dos neo-realistas, que nunca lhe perdoaram as incursões metafísicas: este surpreender de um mistério dos homens, uma intimidade da pessoa, esta espécie de assombro perante o que, em cada um, se não reduz a nenhuma mecânica de forças ou energias, este reconhecimento de uma dimensão que é mais do que a matéria, esta ruptura com o mero determinismo, ora vista como uma ameaça, ora como uma redenção. Na obra de que falo, o espanto perante a evidência da plenitude que é um sujeito não remete para Deus nem para a fé na eternidade. Não há Deus, não há deuses. O único milagre é o estar vivo e sabê-lo. Melhor: é o estar vivo como uma centelha breve e frágil que habita o corpo. Não precisa sequer de lhe sobreviver. É imortal enquanto dura, e tanto lhe basta.

O terreno estava propício para a sementeira. VF é uma síntese de Eça de Queirós e de Fernando Pessoa, na linguagem, na perspicácia, na ironia, na reflexão. Proust ou Sartre, claro, são correntes que aprofundam e enriquecem a síntese, mas Eça de Queirós, por um lado, já fornecera a forma de observação das figuras prosaicas, superficiais e ridículas - Dâmaso ou Acácio são, se repararmos bem, os modelos de um Alfredo, e Eusebiozinho o de um Bexiguinha -, na sua caricatura a traço grosso [não por inépcia do autor, evidentemente, mas porque se trata mesmo de dar a ver uma grosseria lusa], nas falas em que detectamos a graciosidade e a subtileza de chouriços: ainda que Bexiguinha seja algo mais, as aspirações, que revela, ao voo filosófico tropeçam sempre na sua voz de falsete, na entoação alentejana, nas próprias visões toscas; Pessoa, por outro lado, ou Álvaro de Campos, já fornecera a forma de expressão tão linda, as possibilidades da escrita, poética, surpreendente, e a reflexão sobre o que se adivinha para além do mundo prático, como uma angustiante melodia, uma carência de infinito, uma saudade do futuro.   

Ver em Vergílio Ferreira a síntese de Eça de Queirós e de Fernando Pessoa, ver em Aparição uma lusa Nausée - porém mais iluminada, intuindo uma plenitude e um sentido que em La Nausée estão ausentes - é um elogio justo. Vergílio Ferreira, caído praticamente no esquecimento, é um dos pontos altos da literatura portuguesa.

  

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

GRAHAM GREENE: O FIM DA AVENTURA


Numa das suas crónicas, sempre inteligentes e desencantadas, João Pereira Coutinho dava exemplos de figuras e situações romanescas de que a nossa prosaica realidade nunca poderá aproximar-se: o uísque (ou seria o gim?) na minha mão não tem o sabor que adivinhamos num certo romance, o pôr-de-sol diante dos meus olhos não é igual ao que li, um amor real não terá a espessura do amor de Bendrix por Sarah. Aliás, porque perco tempo explicando, quando posso remeter directamente para uma citação que, em tempos, aqui fiz dessa crónica?

Estes nomes, que eu não conhecia ainda, penetraram-me no cérebro e nos sonhos. Bendrix e Sarah. Pesquisei metodicamente, até descobrir que são as duas personagens principais de um romance de Greene, The End of the Affair, que na elegante tradução de Jorge de Sena se verteu para O Fim da Aventura.

Este romance, muito mais do que uma história sobre um amor infeliz, é um
comovente tratado do ciúme. As considerações de Maurice Bendrix, o narrador, sobretudo quando rememora o início, o apogeu e o fim do seu caso amoroso, aproximam-no do Swann, de Proust: Bendrix é, também, o apaixonado inquieto e obcecado, que não consegue conter as perguntas que o assolam, e na franqueza de Sarah detecta sempre o desinteresse e a distância. O homem que adivinha as inúmeras possibilidades a partir de um trejeito, uma mudança de entoação, que sofre porque nada do que vê e ouve em Sarah pode ser inocente. A interpretação do seu menor gesto contém torturas que só outro ciumento poderia imaginar.

O detective contratado por Bendrix para vigiar Sarah - anos volvidos sobre o fim da aventura - é um exemplo muito conseguido de um carácter de tragicomédia, como os que os melhores autores ingleses tão bem compreenderam  e cunharam - vejam Dickens, Somerset Maugham e o próprio Graham Greene. Parkis e seu filho, o adolescente a quem ele ensina a profissão, é um homem meticuloso e humano, que se apega às pessoas cujos passos segue, ridículo, cândido mas inesperadamente profundo. E todos, Bendrix e Sarah, Henry, o marido traído, Parkis e seu filho, o pregador ateu, o padre católico, se movem num mundo sem luz, onde Deus envia sinais que podem não ser sinais: nada mais do que coincidências em que desejamos crer.

Em que desejamos crer ou em que desejamos não crer. Para Bendrix não se trata tanto de duvidar da Sua existência, como de não poder perdoar-Lhe. Deus como Inimigo. Deus como o Pai Injusto e Tremendíssimo, que exige sacrifícios e oferendas preciosas a troco de um pouco de Paz. Que exige o sacrifício do amor - porventura o amor pecaminoso e errado, mas o único que importa e nos resgataria, e dá sentido à vida. Bendrix é o oposto de Job. É a criatura que não aceita e combate, é quase Lúcifer e, como Lúcifer, o que o faz correr é mais da ordem da amargura e do desespero do que verdadeiramente da ordem do Mal.  

sábado, 17 de setembro de 2016

MÁRIO DE CARVALHO: QUEM DISSER O CONTRÁRIO É PORQUE TEM RAZÃO



A «escrita criativa» tem sido, nos últimos anos, objecto de workshops, se não mesmo cursos universitários, ou livros, como se fosse possível ensinar alguém a ser criativo ou a escrever criativamente. Habituados, como estamos, a obras, mais ou menos extensas, carregadas com conselhos, regras e exercícios para fabricar escritores de ficção, arriscamo-nos a tratar equivocadamente este Quem Disser o Contrário é porque tem Razão, de Mário de Carvalho.

A frustração pareceria justificar-se. Aparentemente, o livro nada ensina. Na verdade, ensina de uma forma cada vez menos usual, semeando e revelando possibilidades, pensando ou ajudando a pensar através delas. O seu propósito é, pois, infinitamente superior ao de um mero guia prático. Aliás, «Quem disser o contrário é porque tem razão» significa precisamente que não existem nem devemos esperar, em literatura, regras positivas, definitivas, que não surjam a partir do que os autores foram experimentando, ou cuja transgressão, em vários casos, não tenha permitido produzir autênticas obras-primas. Ou seja, o domínio é vasto, riquíssimo e prima por chaves e soluções opostas, mas todas elas interessantes - e «correctas» precisamente porque possíveis.

Isto dito, segue-se que o texto de Mário de Carvalho pretende ser - e é - uma reflexão profunda e muitíssimo estimulante sobre a escrita do romance. Trata-se, principalmente, de uma caminhada por dentro de livros, muitos livros, onde desde a Odisseia, a Ilíada, as tragédias gregas, recorrendo amiúde à indispensável Poética de Aristóteles - após a qual nada de muito significativo foi acrescentado - até aos maravilhosos romances de todos os tempos, se descobre no concreto das obras, e se pensa sobre o concreto, como construir um livro.

Ficam na memória - entre muitos - os notáveis exemplos sobre como, em obras maiores portuguesas, se inicia uma história, ou se desenha uma personagem, ou procura uma perspectiva. Em O Hóspede de Job, de José Cardoso Pires, vemos, numa cena de arranque, um grupo de homens jogando às cartas, numa taberna [uma venda], enquanto, nas suas costas, dois recrutas amedrontados e um cabo bêbado se deixam adivinhar. Não há diálogo, mas o narrador consegue a proeza de deixar que a sua voz vá encarnando as diferentes perspectivas do grupo de jogadores, ao longo do jogo, como numa conversa muda, entrecortada pelas cartadas e pelos disparates do cabo e o temor, quase palpável, dos soldados. No Primo Basílio, Juliana é a mulher de que nos apiedamos ou que odiamos, sucessiva ou simultaneamente, cuja maldade quase conseguimos compreender, sem nunca resolvermos a repulsa que nos move perante a personagem.

A erudição de Mário de Carvalho é imensa, a sua linguagem sempre um deleite, o exercício de contrapor e mostrar que as alternativas nunca são exclusivas e que as tentativas contrárias podem ser igualmente bem-sucedidas é, em si mesmo, fascinante.

O paradoxo que a este pseudo-Guia prático subjaz, merece, contudo, que nele nos detenhamos por um momento: o que mais, mais profunda e mais duradouramente nos ensina é, muitas vezes, aquilo com que não nos apercebemos de estar aprendendo.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

RADUAN NASSAR: LAVOURA ARCAICA


Mantenho, há provavelmente 2 ou 3 séculos, uma discussão com o meu amigo Jorge, acerca da ficção contemporânea em língua portuguesa. Defende o Jorge que os escritores portugueses, mesmo os melhores, a magnífica geração a que pertencem os Gonçalo M. Tavares e os Valter Hugo Mãe (Tordo seria a evidente excepção) revelam uma penosa incapacidade narrativa. A essência do seu trabalho residiria, é o Jorge a falar, na língua, como se, para eles, "ficção" fosse apenas um dos heterónimos da poesia. Nada de história, nada de propriamente narração, vagas personagens, vagos pensamentos em vagas situações.

Vem a propósito mencionar Raduan Nassar, autor de uma obra que dá na vista por ser tão escassa, vencedor do Prémio Camões 2016 precisamente mercê da força revelada pela sua «prosa poética», o que, segundo o meu amigo, consolidaria essa tendência para o apreço que as elites portuguesas dedicam, em relação à ficção portuguesa [ou à ficção em português...] ao cultivar da linguagem em detrimento do acto de narrar.

É uma discussão interessante. Continuo a pensar que há lugar para todas as formas, e que a qualidade independe completamente da opção por aquilo que se prefere saborear. Se Raduan Nassar é excelente pela inventividade da sua expressão [ou Gonçalo M. Tavares e Valter Hugo Mãe], já João Tordo ou Hugo Gonçalves são exímios na forma de contar histórias: uns lêem-se mais demoradamente, regressando-se vezes sem conta a passagens anteriores, para as usufruirmos com toda a paciência exigida, outros lêem-se em estado de sobressalto e de impaciência, para vermos resolver-se um suspense insuportável. Todos são maravilhosos.

Nassar, de facto, é um decantador prodigioso da língua, e um encantador. O tom e a temática bíblicos reformulam as premissas que conhecíamos. Aqui, o filho pródigo é, de certa forma, Caim, e o seu retorno ao Lar, mais do que um momento de reconciliação familiar, será a assunção da paixão pecaminosa, a declaração de Guerra conta a Palavra estabelecida e contra a Razão do Pai. Senhores! Ao lado disto, as diatribes de Saramago contra os evangelhos parecem de uma cómica candura. Nesta novela - refiro-me particularmente a Lavoura Arcaica, mas Um Copo de Cólera é também de uma coragem impudica - somos obrigados a mergulhar no terreno bravio dos tabus. Lemo-lo com incómodo. A linguagem mascara, não apenas embeleza. Sei: «Mascara» soa forte; mas há, com efeito, uma estratégia de enevoamento, a criação de uma espécie de neblina, sob a qual o leitor se sente um pouco incerto, e se pergunta: será que estou a interpretar bem? será que sucede mesmo o que me parece? estamos perante este acto de transgressão, e estoutro, e aquele?

A beleza do texto nada perde por por causa dessa hesitação das linhas, esse astigmatismo na exposição. Pelo contrário. O seu efeito estético é extraordinário. Como se sob a delícia das palavras se ocultassem sempre serpentes - não tanto "tentadoras", mas "reveladoras" de uma verdade inesperada e crua, dolorosa e transgressora.


terça-feira, 30 de agosto de 2016

AUDREY NIFFENEGGER: A MULHER DO VIAJANTE NO TEMPO



Principiemos, pois, pelo título, que me parece soberbo, mesmo admitindo que afugentaria de antemão as pessoas que odeiam ficção científica, e tomando também em consideração que alguém o possa considerar demasiado revelador. Em relação ao primeiro ponto, nada posso contrapor; em relação ao segundo, discordo: não é demasiado revelador. Revela apenas, isso sim, um tema que é, ele próprio, um achado. Apercebemo-nos do elemento trágico nele contido. O romance não é sobre um viajante no tempo, mas so-
bre a sua mulher - que não é uma viajante. O título sugere uma dissintonia entre os protagonistas. Também permite captarmos o que há de terrível nessa dissintonia: nada a propósito de que se possa gerar um acordo ou um consenso; nada que tenha a ver com a dissensão temporal sob a forma do conflito de gerações, por exemplo. Mas o tempo como o que distancia e separa irremediavelmente.

É um livro enorme - 480 páginas, na edição da Presença de 2004 que, infelizmente, foi «descontinuada»: porquê? que sucedeu?

Encomendei-o, seguindo uma pista de Remédios Literários. E o que tenho entre mãos, A Mulher do Viajante no Tempo, trata-se, espantosamente, do primeiro romance da autora; foi distinguido com o British Book Award 2006. Uma estreia, diria, cujo esplendor jamais se repetirá, porque dificilmente o destino concederia a Audrey Niffenegger a graça de encontrar o prodigioso cruzamento entre um título, um tema e uma estrutura roçando a tal ponto a perfeição.

No seu primeiro encontro, numa Biblioteca, a Newberry Library, Clare Abshire tem 20 anos e Henry DeTamble 28. Clare sabe quem ele é; conhece-o desde os seus 6, todavia Henry, que só viajará até à infância de Clare muitos anos após este primeiro encontro na Biblioteca, ainda a não conhece, não sabe quem ela é ou, sequer, que há-de casar com ela.

A Mulher do Viajante no Tempo é um romance cujo enquadramento cultural e literário, mais do que o puro pedantismo de uma escritora novata, tem como função elaborar uma rede de referências que formam uma outra espessura à história. Citar Homero, Pristley, Emily Dickinson ou Rainer Maria Rilke permite conceber, aqui, o tempo, na sua mais profunda qualidade literária, filosófica e metafórica; nem isso seria necessário para que nos não incomode a ausência de uma explicação científica - como, e por que razão da Física, este homem viaja no tempo? Sabemos que é uma condição e sabemos que há outras pessoas que sofrem dessa condição: cronodeficiência. Henry DeTamble não escolhe viajar. Acontece-lhe. Não prevê senão aprendendo a reconhecer alguns sinais. Não pedimos mais explicações porque, em si mesma, independentemente dos pormenores, a trama está muito bem concebida e não nos interrogamos sobre a sua credibilidade. Mas num nível crítico e reflexivo da leitura, compreendemos que o tempo é, neste caso, a experiência da nossa própria condição existencial, na relação trágica com os demais. O tempo comum, colectivo, é, em certa medida, uma ilusão. Cada um de nós vive encapsulado no seu tempo subjectivo, de que fazem parte as memórias e os projectos. E cada um dos outros «nossos», familiares ou amigos, é sempre - também em certa medida - alguém com quem combinamos pontos de encontro e reencontro. Ancoradouros na viagem. Mas ninguém me acompanha na minha própria viagem.    

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

HARUKI MURAKAMI: KAFKA À BEIRA-MAR



Várias tentativas minhas de entrar em sintonia com a escrita de Murakami foram empreendimentos completamente falhados. Alguns exemplos: desisti de Auto-retrato do Escritor enquanto Corredor de Fundo enquanto o diabo esfrega um olho. Ao fim de umas meras dezenas de páginas, já tinha dado a empresa por falida. Sucede, porém, que o meu leitor José Santos viria a fazer uma referência ao Autor, chamando-me a atenção para os elogios que Manuel Cardoso - o qual apreciamos, ambos, muito - tecera à sua obra, de modo que me preparei para nova experiência. Assim, trouxe de uma biblioteca Dança, Dança, Dança. Percorri uma trintena de páginas. Odiei!

«Estou a bater às portas erradas», concluí. «Vou antes ler 1Q84, que é um dos seus romances mais aplaudidos.»

Volume I. Mais leve do que os anteriores, a espaços até mais interessante, mas pontuado por passagens intragáveis e diálogos tão maus como não encontrava há já muito. Deixei-o sensivelmente a meio - retornarei, talvez, mas não para já.


Até que um dia, numa livraria, decidi comprar o romance seu que mais ruidosamente se incensa. Kafka à Beira-Mar.

No interior do livro, frases promocionais sublinham tratar-se de um «forte candidato ao Prémio Nobel da Literatura», que The Guardian considera um dos «grandes romancistas vivos» e, o Los Angeles Times, «a mais peculiar e sedutora voz da moderna ficção». Diabo. O problema há-de ser meu. Ou não é um problema; sucede apenas que, no infinito universo de magníficos escritores que deixaram obra, alguns terão escrito para mim, e faço meus, outros escreveram para outros leitores que não eu.

Mas, de súbito, deu-se o chamamento. Uma luz minúscula acendeu-se. E logo de início, perante um prólogo enigmático e contido, sombrio e dramático. Uma conversa entre um adolescente que se prepara para fugir de casa e «um rapaz chamado Corvo», que não sabíamos ainda quem fosse, ou o que fosse, ou sequer se realmente existiria a não ser na imaginação do adolescente. A partir desta tensa amarra, tudo se vai tornando fascinante. Capítulos curtos, embora a concisão não se mantenha de forma regular, cada um dos quais apresenta um quadro, isto é, uma situação e um conjunto de personagens que não pedem autorização para entrar, mas nos encantam, e que não percebemos o que une às que já conhecíamos, projectando um fio que, durante muito tempo, não adivinhamos como se entrelaçará com os outros fios numa malha coerente.

De facto, aqui, o elemento fantástico não é esmagador. Existe, ou melhor, vai irrompendo. Nakata, o homem que fala com os gatos, e cada um dos diálogos entre aquele e um certo gato possuem  a carga de estranheza suficiente para que nos interroguemos; sentimo-nos perplexos, mas não defraudados, e, portanto, vamos devorando atenta e esfomeadamente. [Note-se, contudo, que esse plano fantástico, sempre paralelo a uma narrativa credivelmente realista, se vai tornando mais presente, à medida que o mesmo Nakata devém uma personagem importante].

Como é evidente, para um leitor que ama a forma requintada de Agustina Bessa-Luís, como José Santos, este romance soará como insípido nesse aspecto crucial. Falta-lhe uma linguagem rica, subtil, plástica. Ao procurar uma escrita simples e bem-humorada, recorrendo deliberadamente a frases feitas, que a tradução para português poderão ter tornada ainda mais básicas, Murakami [ou a tradutora, não sei bem] opta por uma forma eficaz de narrar, sim, todavia sem a menor espessura.

Em todo o caso, há, em Kafka à Beira-Mar, uma evidente marca japonesa, a ligação a uma certa visão mitológica da realidade, em que as sombras têm um carácter próprio, os demónios cultivam uma perfídia grotesca e a dimensão metafísica não só se anuncia em tudo, e se teme, e venera, como, em grande medida, dirige todas as figuras e todos os acontecimentos. Esse carácter japonês é misterioso e apelativo; já as referências a Kafka propriamente dito, ou a Natsume Soseki, ou a Schubert, parecem sempre um pouco deslocadas, como se se quisesse, por força, pincelar um romance interessante, mas apenas isso, com o tom justo de erudição: candidatura a Prémio Nobel oblige.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

O FENÓMENO PEDRO CHAGAS FREITAS






«Sabe-se, por experiência, que a primeira condição para que uma ideia vá longe e depressa é ser enunciada singelamente e ao alcance dos simples, que a sua fórmula, aguda e rápida, entre na cabeça de cada pessoa, só com uma pancada.»

Stefan Zweig 



Fala-se agora muito de Pedro Chagas Freitas. Não é difícil, ele está por todo o lado. PCF é um escritor imparável. Tem livros de variadas dimensões, alguns de uma invejável grossura, outros de nem tanta. Tropeçamos no homem nos escaparates, nas montras, nas estantes, nas prateleiras dos mais vendidos. Será esse seu talento para se multiplicar, o que enerva tanto? Reparo que alguns dos autores - como o José Rodrigues dos Santos ou a Margarida Rebelo Pinto [olha, todos com 3 nomes?] - que mais comichão provocam nos intelectuais, são escritores que vendem aos milhares, e vários nexos causais poderiam tentar-se para explicar essa recusa da sua omnipresença: inveja por parte dos snobes? Ressentimento dos autores candidatos a Nobel, que, entretanto, têm vendas residuais? Ou um povo abruti, inculto, que incensa a mediocridade - um certo tipo de mediocridade?

Para além de prolixo, Pedro Chagas Freitas tem títulos que me parecem interessantes. Casa Comigo Todos os Dias, que diabo!, é bom. Prometo Falhar é excelente. Já o novel Prometo Perder cheira a mais do mesmo, à fixação numa fórmula, à incapacidade de se renovar.

Tenho de ser sincero. Nunca li um Pedro Chagas Freitas na íntegra. Mas uma espécie de crónicas suas que circulam pelo facebook não são horrorosas. Com boa vontade, reconhecemos, aí, ecos das crónicas de Lobo Antunes para a Visão,  porventura o melhor de Lobo Antunes - mas tanta gente diz isto acerca das crónicas deste na Visão, que a frase se tornou um cliché. Claro: apesar de tudo, não é Lobo Antunes quem quer. E onde, neste, captamos uma inesperada vulnerabilidade, uma delicadeza de sentimentos, uma tristeza e uma saudade trémulas, um medo de criança, sob a capa do machão, um lirismo discreto e um domínio das palavras, em PCF encontramos sempre uma respiração de lugar-comum, déjà-vu, um sentimentalismo fácil, que não é exactamente o mesmo que sensibilidade. A espaços, é bonito. Do que tenho lido, nunca é péssimo. Apenas pouco original, delicodoce, preparado para acertar na bolha das lágrimas, como certos filmes românticos norte-americanos. Há uma receita: pega-se [por exemplo] numa criança de 6 anos perante o divórcio dos pais; a mãe que chora; o menino que testemunha as lágrimas da mãe, e compara essa experiência com a de comer um prato de sopa fria, e tal. Lê-se. Esquece-se. Ou não se perde tempo a ler. Na escala do medíocre, é melhor do que José Rodrigues dos Santos e do que Margarida Rebelo Pinto.

domingo, 26 de junho de 2016

SHIRLEY HAZZARD: O GRANDE CONFLITO



Escrevi já que, a despeito das inúmeras fragilidades que lhe detectava - entre as quais uma confrangedora ausência de auto-ironia -, o livro Remédios Literários teve o mérito de me chamar a atenção para alguns romances possivelmente interessantes. Encomendei O Grande Conflito. Fiz muito bem.

A obra recebeu o National Book Award em 2003. Em Portugal, foi traduzido e publicado pela Gradiva em 2006. Um tempo em que,  a julgar por este caso, a Gradiva era uma editora a sério, que tinha ao seu serviço pelo menos uma tradutora excelente, Maria de Fátima St. Aubyn, rigorosíssima no seu inglês e no seu português, responsável por notas de tradução competentes, indispensáveis e que esclarecem, efectivamente.


A escrita é exigente; clama por leitores de paladar requintado; convida a uma leitura que degusta sem pressa, concentradamente. A riqueza das figuras de estilo - «Antes de o comboio iniciar sequer a marcha, os rostos na plataforma adquiriram a expressão dos que ficam» ou «Teve consciência de um qualquer elemento importante que não identificara. Com indiferença, percebeu que se tratava da beleza» - e a perfeição no uso da narração indirecta livre são elementos de composição que merecem ser analisados por si sós, porventura numa segunda leitura.

Um romance tem de ferir. Uma história inesquecível tem, por força, de nos inquietar. Deve empurrar-nos para algo sobre que, na sua particularidade, não tenhamos ideias feitas; ou deve obrigar-nos a refazer as ideias que julgávamos inquestionáveis. O leitor de um grande romance é sempre uma figura frágil e vulnerável, uma espécie de caniço ao vento. Não somos capazes de abordar uma grande-grande-grande obra trazendo no bolso condenações fáceis, antecipadas e previsíveis, segundo qualquer moral: ninguém é capaz de atirar pedras a Anna Karenina, ao Padre Amaro, a Madame Bovary, a Aschenbach (cuja atracção, aliás, está sempre contida nos limites de um pudor e de uma delicadeza primorosos) ou sequer a Humbert Humbert. Trata-se sempre mais de compreender e de nos interrogarmos a nós próprios do que de julgarmos e proscrevermos. Neste sentido, as traições e as perfídias, as obsessões transgressoras e as paixões pecaminosas, os erros e as perversões, por inaceitáveis que sejam segundo os códigos da civilização, tornam-se, nos romances, apenas a exposição da condição humana, da impossibilidade da pureza e, portanto, de uma sua dimensão trágica. O Grande Conflito, evidentemente, é isso: num perturbador cruzamento entre Reviver o Passado em Brideshead, Morte em Veneza e Lolita . Gostaria muito que a Teresa, autora do extraordinário blogue A Gota de Ran Tan Plan, onde há muito não escreve - e que há muito me não visita - pudesse, ela que me trouxe nada menos que d'Ormesson, dizer-me o que pensa deste romance.

Hesito muito em alargar-me. Sinto que, de alguma forma, as autoras que me levaram à descoberta me amputaram precisamente de alguns aspectos no prazer da descoberta: revelaram excessivamente, e portanto eu já sabia uma parte essencial do enredo. Mas o contexto histórico é o pós-Guerra (1947), e as personagens, inglesas, australianas e norte-americanas, conhecem-se no Japão (ou encontram-se numa China prestes a ser tomada por Mao), num período em que os ecos de Nagasaki e Hiroxima se não esvaíram totalmente. É nesse clima de ruína e de culpabilidade que estas pessoas de gerações diferentes, todas elas carregando também, a seu modo, histórias pessoais de abandono e destroço, se deixam mutuamente encantar: como se sob os escombros e a impossibilidade, as diferenças e o conflito, se escutasse o ténue canto de uma promessa de eternidade em vida. 

segunda-feira, 20 de junho de 2016

MIGUEL ESTEVES CARDOSO: COMO É LINDA A PUTA DA VIDA


A propósito de um encantador texto sobre gatos, de Miguel Esteves Cardoso, tratava eu de "genial" o autor, num comentário de facebook. José Santos, que me lê e cujo original trabalho como encenador tenho vindo a descobrir - e não o digo para retribuir os elogios com que me confunde - concordou prontamente com o adjectivo.

Miguel Esteves Cardoso já na juventude respirava génio. O que escrevia para o jornal Sete, de boa memória, era excelente. Um misto de cultura aristocrática, alimentada pelo estilo e pelas referências britânicos, com um brilho e uma irreverência muito criativos, uma penetração afiada e um sentido de humor que roçava o cinismo. O seu melhor período terá sido o das crónicas no Expresso, onde, como um antropólogo rigoroso mas perplexo, fazia dos costumes portugueses a matéria da sua observação impiedosamente exacta. As senhoras finas de Cascais ou do Estoril, os condutores das Famel Zundapp, sempre com a fivela do capacete desapertada, os taxistas ou os futebolistas eram escalpelizados em pedaços de ciência e ironia que não podíamos perder - como hoje não podemos perder as crónicas de Pedro Mexia, por exemplo.
Passou muito tempo; o seu talento e a sua capacidade de observar foram transformados, amadurecidos seria a palavra, por doses tremendas de amor e de sofrimento. Nestes últimos anos, não li uma única crónica de Miguel Esteves Cardoso que não me acertasse em cheio na alma, e me não comovesse profundamente. Uma inteligência emocional elevada à potência + a linguagem capaz de exprimir os sentimentos com delicadeza e humor; uma serenidade contagiante, eis o que é.

Como é Linda a Puta da Vida é um livro de uma grande sabedoria. O título é todo um programa - à maneira de MEC.

Principiemos pelo cristal que é a tese unificadora, aliás contida no título: a vida é mesmo, mesmo, mesmo, uma putéfia. A madrasta malvada de que nos chegam todos os dias novas informações: mães que se atiram ao mar com os filhos, pessoas que adoecem, jovens, refugiados de guerras, dores injustíssimas de corpo e de alma. Dizer que se trata, aqui, de reconhecer que, apesar de tudo, ela continua valendo a pena, pode soar banal, mesmo superficial, ou leviano, a não ser - como é o caso - que pressintamos em cada palavra a vibração do sofrimento e da tristeza, da preocupação e do medo, que dão à atitude do autor uma autenticidade e uma energia absolutamente inesperadas. Peço emprestado a outro autor, que, por mera coincidência, ando simultaneamente lendo [Koestler], a expressão justa para classificar o tom destas crónicas: é o de um «hedonismo melancólico».

É pois um livro de júbilo e gratidão. Um gracias a la vida sentido, simples mas não estúpido, que atrai por uma leveza que não se confunde com alienação, uma capacidade de rir, que nenhuma mágoa apaga, e um redentor prazer da vida. É uma obra corajosa, muitas vezes de incómoda leitura, pela exposição despudorada da intimidade - nomeadamente ao abordar o cancro da sua companheira amada, Maria João, e a via sacra dos tratamentos, dos exames, da operação. Da reaprendizagem da vida. Mas esse é também o segredo: que todas as contrariedades sejam instrumentos, não de resignação, mas para cultivar o apreço, o gosto, a alegria por cada instante precioso, e um optimismo que se regenera constantemente.

sábado, 4 de junho de 2016

3 AUTORES


                     

Ao José Santos, que gosta de me ler.
                                                       
E ao meu primo, que comigo tem testemunhado, nos últimos dias, os avassaladores sinais do fim de uma era.





Antevendo um possível ensaio que me entusiasma, mas para o qual, neste momento, me faltam forças e tempo, gostaria de reunir três autores e três romances da minha vida. A saber, O Leopardo, de Lampedusa, Au Plaisir de Dieu, de Jean d'Ormesson e Reviver o Passado em Brideshead, de Evelyn Waugh.

Os três são excelentes revisitações da mudança, tomada como o declínio de uma era - isto é, um universo político e religioso, ético e cultural -, e tudo o que com ela fatalmente se perderá, e o surgimento de uma outra, necessariamente mais justa, ainda sem tradição, equívoca; os três estão assombrados pela guerra: no caso de Au Plaisir de Dieu, pelas duas guerras, que são, num certo sentido, a mesma, única, com uma enganadora interrupção; e nos três se trata de um lugar mítico e simbólico, um castelo, um palácio, em que brilham os derradeiros vestígios de um mundo em agonia.

Neste momento, relendo Reviver o Passado em Brideshead, recomendação de meu primo, mais uma, em que, na altura, tanto me custou entrar, redescubro o prazer de uma escrita magistral, muitíssimo hábil e em que pérolas de ironia e concisão passam facilmente desapercebidas, e o gosto por personagens impagáveis.

   Nem sequer me refiro às principais.


Detenham-se antes no pai do narrador, com o seu sarcasmo fatigado; em Anthony Blanche e nas análises em que gagueja certeiramente; ou em Lord Marchmain, com o seu ódio profundo sob uma superfície aprumada.

Detenham-se nas discussões religiosas, a propósito do fervor paradoxal de uma rara família católica versus o distanciamento, não de todo indiferente, que palpita no agnosticismo do narrador.

Detenham-se nas descrições dos lugares que parecem ainda puros, como se não estivessem já contaminados pelo futuro que os ameaça. E, evidentemente, sigam com interesse a vivacidade daquele triângulo amoroso bizarro, que a literatura e o cinema não pararam de reinventar, escabroso e requintado, revolucionário e delicioso, inevitável mas incompreensível.

quarta-feira, 1 de junho de 2016

ADIAMENTO



Por razões alheias à minha vontade e ao que posso dominar - e, já agora, razões que me deixam perplexo - não se realizará o lançamento de no dia 2 de Junho.

Se tudo correr bem, realizar-se-á noutro dia.
Irei dando conhecimento.

terça-feira, 24 de maio de 2016

JOHN BANVILLE: O LIVRO DA CONFISSÃO



Se não por outra razão, Banville mereceria ser lido por causa de uma sagrada sageza na escolha das palavras. «O motorista era um homem muito alto e definhado com um boné na cabeça e um fato de flanela azul de corte antigo», por exemplo: «Examinou-me conscienciosamente pelo espelho retrovisor, sem se preocupar com a estrada à nossa frente. Tentei retribuir-lhe o olhar de modo lúgubre, mas ele não se deixou intimidar e apenas fez um sorriso de esguelha com um ar amável de conhecedor.» Estou certo de que percebem o que tento dizer; parece fácil, mas é de um domínio perfeito: o "conscienciosamente", o "lúgubre", o "sorriso de esguelha" ou o "ar amável de conhecedor", já para não falar da inesperada descrição física ou do hábito (olhar insistentemente pelo espelho retrovisor) combinam-se para que vejamos toda a cena - e é uma cena simples, sem a menor relevância no desenvolvimento narrativo.

É certamente este segredo do uso da linguagem que José Rodrigues dos Santos ignora, quando dá a entender que certos escritores se preocupam excessivamente com as palavras - nanja ele, que seria um "mero" contador de histórias. Notável humildade, sob que se mascara o auto-elogio. E, já agora, a incompreensão: a arte da linguagem não é necessariamente uma coisa que nada tenha que ver com a arte de contar histórias, como se pudéssemos escolher alternativamente. Em Banville, precisamente, a riqueza e o cuidado com a linguagem coincidem com a riqueza e o cuidado na maneira de melhor nos contar. Mas enfim.

Há, neste narrador que se incumbe de escrever a confissão do seu crime, dirigido-a ao juiz, uma espécie de irresponsabilidade radical. Como se nunca reconhecesse intenção ou premeditação nos actos que recorda, como se tivesse tudo sucedido um pouco por acaso, ou ele não estivesse propriamente a escolher mas a tropeçar em situações, ou como se realmente existisse em si um ser viscoso e maligno, conduzindo-o em momentos de raiva ou desespero.

A contenção narrativa é de uma eficácia prodigiosa; a ambiguidade na descrição permite a contínua surpresa do leitor - poderia dar um exemplo, mas estragaria o efeito. Deixem-me ser, também, o quanto baste de contido: num momento, é-nos descrita certa personagem na presença de quem o narrador se encontraria, e quando, por fim, percebemos de quem - ou de que - se trata realmente, escapa-nos um «ora essa!» de admiração, nos dois sentidos da palavra. Todo o romance está carregado dessas pequenas maravilhas, desses equívocos que nos surpreendem: dirigem-nos o olhar para o alvo errado e, de repente, puxam-nos o tapete sob os pés.
Agradecemos e prosseguimos, deliciados.


quinta-feira, 19 de maio de 2016

ELLA BERTHOUD & SUSAN ELDERKIN: REMÉDIOS LITERÁRIOS



Ideias muito boas para livros acerca de livros: como falar dos livros que não lemos (título de uma obra de Pierre Bayard), ou os romances como medicação eficaz. Tais ideias teriam, naturalmente, de ser usadas apenas como pretexto e para permitir um olhar irónico. Se existe um perigo, o de leitores ingénuos tomarem literalmente o que é um exercício de desconstrução - o que, no caso de Bayard, levou a que o zurzissem pela superficialidade da sua intenção [ensinar pessoas que não leram a fingir que sim!?] - também há uma vantagem pedagógica, que é a de nos provocar e obrigar a ver para além do imediato.

Posto isto, se no primeiro exemplo estamos perante um livro inteligentíssimo, no segundo caso estamos diante de uma boa ideia falhada. A razão desta falha é evidente: as autoras levam-se demasiado a sério; crêem religiosamente no que afirmam, quando pretendem usar os livros como remédios. Sem subtileza nem profundidade. Entendamo-nos: os livros são de facto remédios. Ajudam, aliviam, ensinam - mas não no sentido utilitário estrito e estreito, como se pudessem prescrever-me o romance A para eu tratar a minha exaustão, ou a febre dos fenos, a anorexia nervosa ou uma determinada fobia. Um grave pecado que de tudo isto decorre é que, ao organizar-se um dicionário dos livros em função dos problemas que aflijam o potencial leitor, se reduz imediatamente cada obra a uma chave única e redutora. Eu não leria Madame Bovary por causa das minhas hipotéticas dificuldades em ser fiel, valha-me Deus! nem me lembraria de O Jogador por causa de um hipotético vício do jogo. E se uma por outra vez as autoras entreabrem as portas a alguns comentários cómicos, fazem-no sem abandonar a seriedade literal do seu projecto.


Que Ella e Susan são devoradoras de livros, são. Que é verdade que, entre tantos títulos, o que dizem acerca de uma ou outra obra que nos eram desconhecidas - ou de que nos distanciáramos - pode pôr-nos na pista, ou levar-nos a redescobertas benéficas, é, sim. [Já encomendei o Grande Conflito, de Shirley Hazzard; já estou a reler Reviver o Passado em Brideshead: tudo por causa deste livro!] Que ficamos intrigados com alguns acenos sobre determinado romance, também é verdade. A folhear, quanto mais não seja.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

quinta-feira, 12 de maio de 2016

NUNO VAZ: PÓ



Lanço este romance, [sob o pseudónimo de «Nuno Vaz»], dia 2 de Junho - é uma 5ª-feira - às 18h, no Cofre da Previdência, algures na Praça do Município.

O Orador será o extraordinário (e simples, como a maior parte das pessoas verdadeiramente extraordinárias) Miguel Real.

Serão muito bem-vindos - caso tenham tempo, paciência e, em geral, gostem de me ler.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

O MICROCONTO: «LESS IS MORE»


Confesso que, neste momento, estou rendido ao microconto.

Um estudante brasileiro escreveu, já infelizmente me não recordo onde, que durante muito tempo o próprio conceito de microconto o irritava. Tomava esse exercício como uma forma de preguiça mental: criar uma história com o menor número de palavras possível. Segundo ele, o problema seria o do abuso. Como em relação aos haikus, em que um poema brevíssimo deveria ser a expressão possível de uma visão mística, mas, nas mãos do vulgo, se tornou num jogo fácil, também o microconto deveio um género medíocre para gáudio dos que não são capazes de desenvolver meticulosamente uma história. Mais tarde, também o estudante acabou por se render. Quando? Quando descobriu os melhores autores (Kafka e Borges, por exemplo) e alguns dos melhores microcontos. Provavelmente, os primeiros, antes de se haverem transformado numa brincadeira a que todos julgam ser capazes de brincar.

Como é evidente, em poucas palavras só se pode expor um certo aspecto da história. Não conhecemos os antecedentes nem sabemos como acabará. Aterrámos, por um momento, num ângulo, ou num momento, a partir do qual teremos nós próprios (o leitor) de supor e adivinhar. O de Hemingway é soberbo. Em 6 palavras, entreabre a cortina para uma tragédia que nunca se explicitará:  «For sale: Baby shoes, never worn.» Ou, em português, «Vende-se: sapatos de bebé, nunca usados.»

Meu primo ensaiou uma interpretação cómica: e se não houver tragédia nenhuma? E se um Japonês encomendou sapatos, não conhecendo suficientemente a língua inglesa para indicar o que queria, e recebendo em casa os sapatos de bebé, que obviamente não lhe serviam, os pôs à venda? Em todo o caso, este é um aspecto interessante do microconto. Não se trata de, necessariamente, abrir em poucas palavras a respiração da tragédia, mas a da comédia, a da estupefacção, a da tristeza - o que se queira. Se mais não for, é uma experiência - e mais difícil do que se diria.   

quinta-feira, 24 de março de 2016

HENRI BARBUSSE: L'ENFER


«Todos os roubos são passionais, mesmo este, que é cobarde e vulgar. (O seu olhar de inextinguível amor pelo tesouro de repente descoberto!) Todos os delitos, todos os crimes, são atentados praticados à imagem do imenso desejo de roubo que é a nossa própria essência e a forma da nossa alma nua: ter o que se não tem.»
             
Henri Barbusse, L'Enfer  




Primeira referência pessoal: este é um dos livros que comecei a perseguir quando li um comentário sobre ele em The Outsider, de Colin Wilson.

Descubro um romance que escava planícies para tocar no subterrâneo interdito; como Lolita ou Lua de Mel, Lua de Fel, o seu território é o de um comportamento social e moralmente inadmissível, o do vício asqueroso, porém tocado de tal forma pelo talento do autor, pela sua linguagem, que se torna sublime. Não me entendam mal. Não se trata de desculpá-lo. Não muda o modo como o olhamos eticamente; não que passemos a admirá-lo, sequer a aceitá-lo. Mas, por um lado, a verdade posta a nu no seu concreto é diferente da que esperávamos. Em vez da maldade ou do desrespeito por outrem, apenas encontramos, como móbil, a solidão, a melancolia, a ausência de laços autênticos. Em vez da curiosidade abusadora, apenas um insaciável e pervertido interesse pelas pessoas. Porque a história - se há propriamente uma história - é a de um narrador que confessa o seu voyeurismo, isto é, narra a maneira como, num quarto de hotel, por um buraco, observa minuciosamente o que sucede no quarto ao lado. A mulher que se desnuda. Os infiéis que se amam e conversam sobre o que desejariam encontrar no seu amor proibido. Um parto. Um dos quadros mais perturbadores é o do sacrifício de uma mulher por razões materiais: casa-se com um homem no limiar da morte para ter direito à sua herança (ela que ama um outro) e oferece, essa noite, o espectáculo da sua nudez àquele que a desposou por piedade e amor.

Percebe-se, portanto, que o registo é o do dilema. É o de reconstituir o pecado na sua debilidade e palpitação humanas, naquilo que resiste às classificações demasiado definitivas. É o da perplexidade,afinal.

     «E quando ela se vestiu  e obscureceu para sempre, e eles se deixaram nada mais ousando dizer, fui agitado por uma grande dúvida. Ela tinha razão? Errou?»

Não é só na estética da linguagem que tudo se esgota, como se a beleza redimisse qualquer mal. Trata-se propriamente da inquietação, do desconforto para que este romance nos arrasta (ele é, na sua forma peculiar, um Livro do Desassossego) e de como essa angústia intocável, difusa, informe mas
penetrante, nos faz perceber que o lugar mais delicado e complexo do humano não é o das grandes certezas morais, mas o da sua génese e fundação: o ponto onde o bem e o mal ainda se não estabeleceram e, portanto, por terrível que seja dizê-lo, conseguimos compreender aquilo que depois - i.e., quando as certezas entretanto se calcificaram - já não seremos capazes de compreender. Apenas desaprovar. Apenas condenar, na nossa indiscutível razão. Daí a importância que adquire, nesta história, o doloroso conflito entre o moribundo e o padre-abutre: «Eu pensava que este padre, na sua violência e na sua grosseria, tinha horrivelmente razão.»

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

ELENA FERRANTE: A AMIGA GENIAL (TETRALOGIA)



Concluí a noite passada a leitura do 3º volume [História de Quem Vai e de Quem Fica], em que me embrenhei como já antes me embrenhara no 1º [A Amiga Genial] e, a seguir, no 2º [História do Novo Nome], talvez aquele que, até agora, mais intensa e dramaticamente me raptou à minha realidade quotidiana, para me fazer viver em outra realidade; e devo confessar que já não sentia desta maneira uma urgência de leitura - estava incapaz de me deter, esquecido de horas para comer ou dormir, esquecido de outras tarefas - mas marcada, ao mesmo tempo, pela angústia de me estar a aproximar da última página e da iminência da despedida. Senti-a em cada um dos volumes, em todos os casos aplacando o mal-estar com a consciência de que haveria um volume seguinte.

É uma obra da moda. Suspendo, no meu blogue - já o fiz outras vezes, aliás - a obediência ao objectivo de escrever sobre as obras invisíveis, os clássicos que surpreendo em edições antigas, perdidas, resgatadas às catacumbas e aos túneis secretos das livrarias ou das bibliotecas. Faço-o porque se trata de mais uma excepção: Ferrante justifica-o; a história das duas amigas napolitanas, que nos vai sendo narrada desde a infância destas, no bairro duro, como um gueto onde o dia-a-dia agressivo e ruidoso se faz no dialecto praticamente ininteligível para os demais italianos, da adolescência, a juventude, a maturidade, entre os anos 60 e os anos 90 - até à velhice, no volume que ainda agora comecei a ler [História da Menina Perdida] - por dezenas de razões me parece ser uma síntese do que de melhor a literatura do nosso tempo pôde alcançar.

Principio pela escrita. A enganadora simplicidade do texto de Elena Ferrante, fugindo ao ornamento, na busca de uma limpidez que resulta, no entanto, de um longo trabalho de aparar e refinar até não subsistir nada que distraia da sublime e clara essência, é um segredo de raros eleitos. Nada de neologismos, de bifurcações de frases: a originalidade está nas imagens; as metáforas nada têm de artificial: e são evidentes, apesar da sua frescura e da sua originalidade. Não parecem procuradas e construídas segundo regras retóricas, mas espontâneas e sem ruído. Transcrevo um único exemplo, que retiro do início do último volume, que já estou a ler:

«Assim fiquei sozinha com Antonio. Pareceu-me que tinha na minha frente duas pessoas no mesmo corpo, e no entanto bem distintas. Era o rapaz que em tempos passados me abraçara nos pauis, que me idolatrara, e cujo odor intenso me ficara na memória, como um desejo nunca na realidade satisfeito. E era o homem de agora, sem um fio de gordura no corpo, feito de ossos grandes e pele esticada, desde o rosto duro e sem olhar, até aos pés metidos nuns sapatos enormes

Por outro lado, o modo de contar é neurótico e vertiginoso, composto por segmentos breves que nos deixam, frequentemente, à beira de um abismo. Mas, sobretudo, as personagens são de uma tal autenticidade, que as sentimos respirar, nas suas humanas imperfeições que raramente no-las tornam detestáveis. A ambição, a inveja, o ciúme, ou actos tão mesquinhos (e universais) como mentir, humilhar ou trair, são sempre carregados de cambiantes que evitam que se tornem simples, ou que possam ser julgados de forma maniqueísta. Mas mais do que isso - exactamente como sucede quando nos debruçamos sobre os casos da vida real - nem sempre estamos seguros de interpretar adequadamente os móbiles destas pessoas. Desse ponto de vista, o que move realmente Lila permanece-nos obscuro: no limite, a maldade pura? Uma espécie de pulsão maléfica? Uma fome desmesurada de poder, de controle sobre os outros? O medo? A loucura? Interrogamo-nos, perplexos, ou indignados, ou apiedados, mas incapazes de cortar relações com ela, de lhe virar costas, de a olhar como a uma inimiga, presos aliás do mesmo fascínio que Elena - Lenù, a narradora, que Lila sistematicamente espezinha e utiliza, Lenù que frequentemente lhe foge, mas regressa sempre à esfera da sua amiga peculiar. Tanto mais que - faz parte da densidade da personagem - Lila não se esgota no seu lado malévolo: «Quando queria, sabia ser calma, judiciosa [...] E era generosa

As motivações subterrâneas de Lila são-nos ainda mais opacas porque, sob o halo desse fascínio quase sacro, a narradora tende a exagerar os seus poderes e capacidades. Uma passagem, só: num relance, Lila viu o que a amiga temia: mas teria mesmo visto, será a sua perspicácia a tal ponto penetrante? Desconfiamos sempre de que a admiração e o fascínio que a narradora nutre por Lila a eleve a um estatuto quase sobrenatural. E essa ambiguidade é um dos pontos fortes deste bildungsroman, este fabuloso romance que nos torna testemunhas da transformação e formação das personagens ao longo de uma vida. A "formação" é aqui, também, de certo modo, muitas vezes a "revelação", a consolidação de indícios que não compreendêramos na sua infância ou na sua adolescência, mas acabam por se reunir numa verdade interior, que encontrará o tempo certo para aparecer, se sobrepor a outras, dominar a personagem: como em Nino, como em Alfonso.        

É um romance que atravessa vários decénios, obrigando-nos a ser também os leitores da História contemporânea da Itália, desde o fim da Guerra (e do fascismo, que ecoa e vibra, ali, ainda), passando pelas movimentações juvenis e estudantis dos anos 60, pelo fascínio esdrúxulo do terrorismo das Brigadas Vermelhas nos anos 70, pela imersão no fumo de discussões contínuas, nas elites, sobre o socialismo e o comunismo, o feminismo, o estruturalismo, o pós-modernismo, sobre o modo como a droga se expande, sobretudo nos bairros pobres, gerando lucros e morte a uma escala nova. E, por fim, um romance único acerca da força das origens sociais e culturais: se quiserem, a questão de perceber-se em que medida a instrução é realmente um instrumento que liberta dessas origens ou, pelo contrário, se estas são a nossa essência e a nossa armadilha, porventura mascaradas e recalcadas, mas sempre a um passo de retornarem em qualquer momento de crise: na luta de Lenù para ser diferente da mãe, para se tornar menos "napolitana", para se educar e refinar cortando amarras com as raízes (o dialecto, já mencionado, a moral retrógrada, os laços que constantemente reaparecem, interferindo no seu percurso), luta que é ao mesmo tempo provocada e travada por Lila, assistimos precisamente aos passos dessa hesitação e dessa insegurança, essa incerteza sobre quem se é, e de onde se é.

A identidade da autora - "Elena Ferrante", que ninguém sabe quem seja - tornou-se-me, com o tempo, uma questão irrelevante. Mas a discussão sobre se poderia até ser um homem, faz-me aclarar a resposta a um velho problema meu: sim, existe uma maneira de escrever feminina, identificável em si mesma, isto é, independentemente de quaisquer informações sobre o autor; sim, só uma mulher poderia escrever assim acerca das mulheres, mesmo quando as põe agressivamente em causa, numa espécie de pacto com a autenticidade das emoções, dos sentimentos, das ambições. E sim, esta forma não pode ser imitada nem copiada unicamente a partir do exterior. Donde a conclusão: "Elena Ferrante" é um pseudónimo que esconde, e descobre, uma mulher.