segunda-feira, 20 de junho de 2016

MIGUEL ESTEVES CARDOSO: COMO É LINDA A PUTA DA VIDA


A propósito de um encantador texto sobre gatos, de Miguel Esteves Cardoso, tratava eu de "genial" o autor, num comentário de facebook. José Santos, que me lê e cujo original trabalho como encenador tenho vindo a descobrir - e não o digo para retribuir os elogios com que me confunde - concordou prontamente com o adjectivo.

Miguel Esteves Cardoso já na juventude respirava génio. O que escrevia para o jornal Sete, de boa memória, era excelente. Um misto de cultura aristocrática, alimentada pelo estilo e pelas referências britânicos, com um brilho e uma irreverência muito criativos, uma penetração afiada e um sentido de humor que roçava o cinismo. O seu melhor período terá sido o das crónicas no Expresso, onde, como um antropólogo rigoroso mas perplexo, fazia dos costumes portugueses a matéria da sua observação impiedosamente exacta. As senhoras finas de Cascais ou do Estoril, os condutores das Famel Zundapp, sempre com a fivela do capacete desapertada, os taxistas ou os futebolistas eram escalpelizados em pedaços de ciência e ironia que não podíamos perder - como hoje não podemos perder as crónicas de Pedro Mexia, por exemplo.
Passou muito tempo; o seu talento e a sua capacidade de observar foram transformados, amadurecidos seria a palavra, por doses tremendas de amor e de sofrimento. Nestes últimos anos, não li uma única crónica de Miguel Esteves Cardoso que não me acertasse em cheio na alma, e me não comovesse profundamente. Uma inteligência emocional elevada à potência + a linguagem capaz de exprimir os sentimentos com delicadeza e humor; uma serenidade contagiante, eis o que é.

Como é Linda a Puta da Vida é um livro de uma grande sabedoria. O título é todo um programa - à maneira de MEC.

Principiemos pelo cristal que é a tese unificadora, aliás contida no título: a vida é mesmo, mesmo, mesmo, uma putéfia. A madrasta malvada de que nos chegam todos os dias novas informações: mães que se atiram ao mar com os filhos, pessoas que adoecem, jovens, refugiados de guerras, dores injustíssimas de corpo e de alma. Dizer que se trata, aqui, de reconhecer que, apesar de tudo, ela continua valendo a pena, pode soar banal, mesmo superficial, ou leviano, a não ser - como é o caso - que pressintamos em cada palavra a vibração do sofrimento e da tristeza, da preocupação e do medo, que dão à atitude do autor uma autenticidade e uma energia absolutamente inesperadas. Peço emprestado a outro autor, que, por mera coincidência, ando simultaneamente lendo [Koestler], a expressão justa para classificar o tom destas crónicas: é o de um «hedonismo melancólico».

É pois um livro de júbilo e gratidão. Um gracias a la vida sentido, simples mas não estúpido, que atrai por uma leveza que não se confunde com alienação, uma capacidade de rir, que nenhuma mágoa apaga, e um redentor prazer da vida. É uma obra corajosa, muitas vezes de incómoda leitura, pela exposição despudorada da intimidade - nomeadamente ao abordar o cancro da sua companheira amada, Maria João, e a via sacra dos tratamentos, dos exames, da operação. Da reaprendizagem da vida. Mas esse é também o segredo: que todas as contrariedades sejam instrumentos, não de resignação, mas para cultivar o apreço, o gosto, a alegria por cada instante precioso, e um optimismo que se regenera constantemente.

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