terça-feira, 30 de agosto de 2016

AUDREY NIFFENEGGER: A MULHER DO VIAJANTE NO TEMPO



Principiemos, pois, pelo título, que me parece soberbo, mesmo admitindo que afugentaria de antemão as pessoas que odeiam ficção científica, e tomando também em consideração que alguém o possa considerar demasiado revelador. Em relação ao primeiro ponto, nada posso contrapor; em relação ao segundo, discordo: não é demasiado revelador. Revela apenas, isso sim, um tema que é, ele próprio, um achado. Apercebemo-nos do elemento trágico nele contido. O romance não é sobre um viajante no tempo, mas so-
bre a sua mulher - que não é uma viajante. O título sugere uma dissintonia entre os protagonistas. Também permite captarmos o que há de terrível nessa dissintonia: nada a propósito de que se possa gerar um acordo ou um consenso; nada que tenha a ver com a dissensão temporal sob a forma do conflito de gerações, por exemplo. Mas o tempo como o que distancia e separa irremediavelmente.

É um livro enorme - 480 páginas, na edição da Presença de 2004 que, infelizmente, foi «descontinuada»: porquê? que sucedeu?

Encomendei-o, seguindo uma pista de Remédios Literários. E o que tenho entre mãos, A Mulher do Viajante no Tempo, trata-se, espantosamente, do primeiro romance da autora; foi distinguido com o British Book Award 2006. Uma estreia, diria, cujo esplendor jamais se repetirá, porque dificilmente o destino concederia a Audrey Niffenegger a graça de encontrar o prodigioso cruzamento entre um título, um tema e uma estrutura roçando a tal ponto a perfeição.

No seu primeiro encontro, numa Biblioteca, a Newberry Library, Clare Abshire tem 20 anos e Henry DeTamble 28. Clare sabe quem ele é; conhece-o desde os seus 6, todavia Henry, que só viajará até à infância de Clare muitos anos após este primeiro encontro na Biblioteca, ainda a não conhece, não sabe quem ela é ou, sequer, que há-de casar com ela.

A Mulher do Viajante no Tempo é um romance cujo enquadramento cultural e literário, mais do que o puro pedantismo de uma escritora novata, tem como função elaborar uma rede de referências que formam uma outra espessura à história. Citar Homero, Pristley, Emily Dickinson ou Rainer Maria Rilke permite conceber, aqui, o tempo, na sua mais profunda qualidade literária, filosófica e metafórica; nem isso seria necessário para que nos não incomode a ausência de uma explicação científica - como, e por que razão da Física, este homem viaja no tempo? Sabemos que é uma condição e sabemos que há outras pessoas que sofrem dessa condição: cronodeficiência. Henry DeTamble não escolhe viajar. Acontece-lhe. Não prevê senão aprendendo a reconhecer alguns sinais. Não pedimos mais explicações porque, em si mesma, independentemente dos pormenores, a trama está muito bem concebida e não nos interrogamos sobre a sua credibilidade. Mas num nível crítico e reflexivo da leitura, compreendemos que o tempo é, neste caso, a experiência da nossa própria condição existencial, na relação trágica com os demais. O tempo comum, colectivo, é, em certa medida, uma ilusão. Cada um de nós vive encapsulado no seu tempo subjectivo, de que fazem parte as memórias e os projectos. E cada um dos outros «nossos», familiares ou amigos, é sempre - também em certa medida - alguém com quem combinamos pontos de encontro e reencontro. Ancoradouros na viagem. Mas ninguém me acompanha na minha própria viagem.    

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

HARUKI MURAKAMI: KAFKA À BEIRA-MAR



Várias tentativas minhas de entrar em sintonia com a escrita de Murakami foram empreendimentos completamente falhados. Alguns exemplos: desisti de Auto-retrato do Escritor enquanto Corredor de Fundo enquanto o diabo esfrega um olho. Ao fim de umas meras dezenas de páginas, já tinha dado a empresa por falida. Sucede, porém, que o meu leitor José Santos viria a fazer uma referência ao Autor, chamando-me a atenção para os elogios que Manuel Cardoso - o qual apreciamos, ambos, muito - tecera à sua obra, de modo que me preparei para nova experiência. Assim, trouxe de uma biblioteca Dança, Dança, Dança. Percorri uma trintena de páginas. Odiei!

«Estou a bater às portas erradas», concluí. «Vou antes ler 1Q84, que é um dos seus romances mais aplaudidos.»

Volume I. Mais leve do que os anteriores, a espaços até mais interessante, mas pontuado por passagens intragáveis e diálogos tão maus como não encontrava há já muito. Deixei-o sensivelmente a meio - retornarei, talvez, mas não para já.


Até que um dia, numa livraria, decidi comprar o romance seu que mais ruidosamente se incensa. Kafka à Beira-Mar.

No interior do livro, frases promocionais sublinham tratar-se de um «forte candidato ao Prémio Nobel da Literatura», que The Guardian considera um dos «grandes romancistas vivos» e, o Los Angeles Times, «a mais peculiar e sedutora voz da moderna ficção». Diabo. O problema há-de ser meu. Ou não é um problema; sucede apenas que, no infinito universo de magníficos escritores que deixaram obra, alguns terão escrito para mim, e faço meus, outros escreveram para outros leitores que não eu.

Mas, de súbito, deu-se o chamamento. Uma luz minúscula acendeu-se. E logo de início, perante um prólogo enigmático e contido, sombrio e dramático. Uma conversa entre um adolescente que se prepara para fugir de casa e «um rapaz chamado Corvo», que não sabíamos ainda quem fosse, ou o que fosse, ou sequer se realmente existiria a não ser na imaginação do adolescente. A partir desta tensa amarra, tudo se vai tornando fascinante. Capítulos curtos, embora a concisão não se mantenha de forma regular, cada um dos quais apresenta um quadro, isto é, uma situação e um conjunto de personagens que não pedem autorização para entrar, mas nos encantam, e que não percebemos o que une às que já conhecíamos, projectando um fio que, durante muito tempo, não adivinhamos como se entrelaçará com os outros fios numa malha coerente.

De facto, aqui, o elemento fantástico não é esmagador. Existe, ou melhor, vai irrompendo. Nakata, o homem que fala com os gatos, e cada um dos diálogos entre aquele e um certo gato possuem  a carga de estranheza suficiente para que nos interroguemos; sentimo-nos perplexos, mas não defraudados, e, portanto, vamos devorando atenta e esfomeadamente. [Note-se, contudo, que esse plano fantástico, sempre paralelo a uma narrativa credivelmente realista, se vai tornando mais presente, à medida que o mesmo Nakata devém uma personagem importante].

Como é evidente, para um leitor que ama a forma requintada de Agustina Bessa-Luís, como José Santos, este romance soará como insípido nesse aspecto crucial. Falta-lhe uma linguagem rica, subtil, plástica. Ao procurar uma escrita simples e bem-humorada, recorrendo deliberadamente a frases feitas, que a tradução para português poderão ter tornada ainda mais básicas, Murakami [ou a tradutora, não sei bem] opta por uma forma eficaz de narrar, sim, todavia sem a menor espessura.

Em todo o caso, há, em Kafka à Beira-Mar, uma evidente marca japonesa, a ligação a uma certa visão mitológica da realidade, em que as sombras têm um carácter próprio, os demónios cultivam uma perfídia grotesca e a dimensão metafísica não só se anuncia em tudo, e se teme, e venera, como, em grande medida, dirige todas as figuras e todos os acontecimentos. Esse carácter japonês é misterioso e apelativo; já as referências a Kafka propriamente dito, ou a Natsume Soseki, ou a Schubert, parecem sempre um pouco deslocadas, como se se quisesse, por força, pincelar um romance interessante, mas apenas isso, com o tom justo de erudição: candidatura a Prémio Nobel oblige.