domingo, 19 de fevereiro de 2017

SIMONE DE BEAUVOIR: MEMÓRIAS DE UMA MENINA BEM-COMPORTADA


Às vezes tropeço em mim a pensar que ninguém se conhece realmente a si próprio. E a concordar com Nietzsche, que cito de memória: conhecer-se é o mais difícil tipo de conhecimento. Daí que, em última análise, as memórias tenham sempre uma parte de involuntária ficção. As recordações são interpretações, e há que suspeitar do modo como nos explicamos a posteriori.

Em nenhum livro isso me pareceu tão evidente como em Memórias de Uma Menina Bem-comportada. As razões que a filósofa atribui, anos volvidos, aos comportamentos da criança de 4 ou 5 anos que ela foi justificam tanto tais comportamentos, como, inversamente, e olhados a essa luz, tais comportamentos servem para justificar antecipadanente a sua teoria filosófica. É um círculo vicioso. Onde descreve birras e zangas perfeitamente inaceitáveis, que, se eu a elas tivesse assistido, me fariam comentar «raios! mas que garota tão mal-criada», Simone de Beauvoir detecta profundas razões existenciais, uma surda indignação da menina contra a sem-razão das regras do mundo [em que não vê nenhuma necessidade, tão-só a arbitrariedade] ou a revolta contra a sistemática representação de papéis pelos adultos quando lidam com as crianças.

«Foi por isso que resisti vivamente quando a avó me quis ensinar as notas musicais. Ela indicava com uma agulha de tricotar as bolas inscritas na pauta; tal linha equivalia, dizia ela, a tal nota no piano. Porquê? Como? Eu não via nada de comum entre o papel e o teclado. Quando pretendiam impor-me regras injustificadas, revoltava-me; da mesma maneira recusava as verdades que não eram reflexo de um absoluto. Só queria ceder à necessidade; as decisões humanas eram causadas mais ou menos por caprichos, não tinham suficiente peso para forçar a minha adesão.»

Os existencialistas tomam, quase por princípio, a consciência infantil como uma fonte de escolhas com profundas implicações filosóficas. É sempre nesse contexto filosófico que recordam as crianças que foram. As Palavras, de Sartre, que nem por isso deixa de ser um livro interessantíssimo, ilustra o mesmo pecado, que consistiria em apresentar todas as escolhas infantis como precoces decisões éticas, sob o peso esmagador de uma reflexão acerca da condição humana. Pode ser que eles estejam certos, e eu não. Pode até ser que eu alimente esse preconceito, relativamente às crianças, de que S. de B. fala, e tenda a vê-las como seres incompletos, senão como «coisas».

Em todo o caso, o brilho que nos cativa nestas memórias é o de um tempo já tão longínquo de nós, representado mais através de deliciosas irrelevâncias do que de grandiosas movimentações da história e da política. Reencontrar o tempo perdido (e sim, há um deliberado tom proustiano nesta obra), tratando de coleccionar fragmentos efémeros, sons, sabores, cheiros, visões, modos, tiques, lugares, é um processo melancólico, mas irresistível. Os bolinhos de areia que a criança fazia, um martelinho de alcaçuz, uma écharpe de musselina verde, da mãe, as silhuetas e as vozes dos pais, discutindo, as patilhas brancas e o boné do avô paterno, as flores do jardim deste, a colecção de cartões com duas fotografias que o estereoscópio transformava numa imagem a três dimensões, ou álbuns que se «animavam ao toque do polegar», o carro puxado por cavalos, e cujos bancos cheiravam a pó e a sol. E, entre todas estas fulgurações, a emergência da importância e do poder das palavras (precisamente como em Sartre) ou a importância e o poder da linguagem - a qual, primeiramente, se revela enganadora, porque acreditamos que «recobre exactamente a realidade», como se entre a palavra e o seu objecto se não concebesse «distância alguma onde o erro pudesse imiscuir-se»; mas que vai, aos poucos, ganhando os contornos de um instrumento subtil e flexível, que nos ensina a pensar, no gume da dúvida e de uma distância em relação a toda a realidade.
    

Por que razão o título sugere como bem-comportada esta menina que, no desfiar das memórias, nos aparece como tendo um feitio difícil, acessos bruscos de mau-humor, capaz de convulsões de irritação perante as quais os adultos se mostram impotentes? Boa pergunta. O equívoco deve-se, porventura, à tradução. Não sei como verter para português, numa única palavra, o "rangée" de Mémoires d'une Jeune Fille Rangée, mas não significa propriamente "bem-comportada": antes enquadrada (a ideia é mais essa), ajustada às ideias e aos valores do meio burguês em que nasceu e foi educada. E portanto este livro é, também - ou: é, principalmente - o reconstituir de uma desconstrução que a autora foi fazendo ao longo da sua vida, ou de uma desaprendizagem: a progressiva autonomia entendida como libertação relativamente a um modelo de vida, a uma ordem burguesa em que circula a má-fé.

Nesse sentido, é claro, os desaforos da menina seriam já salutares episódios de revolta. Porque se o seu mundo parece sereno e indubitável a maior parte do tempo, pelos interstícios da serenidade burguesa emergem pontos de fuga para o temível, para o infinito, para o caótico. «Por vezes um rasgão deixava entrever por detrás da tela pintada profundidades confusas». E não só a Primeira Grande Guerra, que eclode ainda durante a sua infância, mas, no dia-a-dia, a secreta percepção da instabilidade. Mesmo o Jardim do Luxemburgo, onde brincava amiúde, está longe de uma completa domesticação, com as suas «moitas intocáveis» e «relvas proibidas». São profundidades confusas, tais como os túneis de metro, que lhe pareciam fugir para o infinito, em «direcção ao coração secreto da terra», ou como um depósito de carvão, no Boulevard Montparnasse, de onde saíam homens de rostos mascarrados, e com sacas de serapilheira enfiadas na cabeça.

Em tal medida, como afirma Hegel, escolhemos o nosso próprio passado. Ou seja, interpretamo-lo como um projecto que nos anunciava desde o início - e justificaria, em potência, a nossa actual visão do mundo e a nossa filosofia.