sábado, 29 de julho de 2017

RAYMOND RADIGUET: COM O DIABO NO CORPO

    
     «Na minha irrequieta juventude de estudioso», escreve Umberto Eco, num livro a que nunca me canso de regressar, Seis Passeios nos Bosques da Ficção, «serviu-me de exemplo e deu-me conforto saber que Kant havia escrito a sua obra-prima filosófica com a venerável idade de cinquenta e sete anos, tal como senti uma terrível inveja quando constatei que Raymond Radiguet escreveu Le Diable au Corps com apenas vinte

     Com o Diabo no Corpo se denomina, em português, o romance traduzido e publicado pela Relógio d'Água em 2009. Compreendemos a inveja de Umberto Eco. A inveja e também uma surpresa implícita nas suas palavras: Radiguet concilia, nesta obra, a candura emocional (e o espantoso egoísmo) do jovem que era, e a profundidade intelectual e poética de um autor da família de Rimbaud, Verlaine ou Céline. Aquela limpidez de expressão, em que não se nota o menor esforço, e onde sobressaem passagens fulgurantes, não parece propriamente a de um garoto no início da sua experiência literária. É o tom perfeito para a narração do crescimento do menino neurasténico, inteligente mas sem quase amigos, que descobre o amor - a paixão, l'amour fou, que não hesita em viver até ao limite, a despeito de tudo e contra todos, e mesmo como traição.

Leio esta narrativa como um ensaio metódico e profundo sobre o amor e a sua radical interferência na razão moral do sujeito, reduzindo drástica e egoisticamente o leque de escolhas àquelas que sirvam e protejam a relação. Tudo o mais perde importância, torna-se irrelevante. Não há outras pessoas, outras razões, outros interesses, nada mais. Como o jovem narrador é de uma franqueza absoluta consigo mesmo e com o leitor (como, aliás, com ninguém mais: nem com a amada, muito menos com o marido desta ou com os próprios pais), aquilo a que assistimos é a uma fascinante fenomenologia das emoções que o movem, os jogos psicológicos a que se entrega, as dúvidas acerca das razões dos seus actos ou, até, acerca da autenticidade e da constância do seu amor, os surtos de piedade ante o mal que provoca, o reconhecimento de uma perversidade gratuita.

Há, ao mesmo tempo, ao longo da leitura do romance, um angustiante desconforto que persegue persistentemente o leitor. Não: não diria que advém do contacto com a encarnação do mal. Mais rapidamente apostaria no desconforto de identificarmos, no despudorado strip-tease do protagonista, a exposição da nossa íntima impureza.        

terça-feira, 18 de julho de 2017

FRANZ KAFKA: O CASTELO



«O senhor interpreta tudo mal, mesmo o silêncio.»
Franz Kafka, O Castelo



Kafka é um autor imprescindível. O Processo e A Metamorfose são romances que não podemos deixar de ler, que teremos necessariamente de reler, porque se nos revelam diferentemente em diferentes idades da vida, e que penetram em nós - perdão pelo jogo fácil e óbvio - metamorfoseando-nos, de facto, emocional e intelectualmente.

O Castelo foi lido, por mim, numa antiga edição da Livros do Brasil, era eu, então, um jovem angustiado e inquieto. Devo dizer que, dramaticamente impressionado por O Processo, e em segundo lugar por A Metamorfose, tomei O Castelo, de certa forma, por mais do mesmo. Duro e complexo, ainda desassossegador, é claro, mas sem o poder da surpresa terrível e fatal que encontrara nos anteriores e, evidentemente, já não encontramos quando estamos preparados.

Releio-o agora, e percebo que certos autores não devem ser devorados numa única fase, porque existe um efeito de contaminação de uma sua obra sobre outra, que faz com que vamos lendo as seguintes como réplicas ligeiramente modificadas das anteriores. Ao mesmo tempo, dizê-lo não pode deixar de ser uma inutilidade: certas descobertas contêm, como imperativo categórico, o esgotamento do autor que viemos de descobrir, a busca insaciável de tudo o que possamos ler dele. Não faz mal. Haverá sempre tempo para uma releitura tardia deste ou daquele texto específicos.

As personagens de O Castelo estão imbuídas daquele perverso tom onírico que aprendemos a designar por kafkiano: os aldeões confundem-se, como uma espécie de massa que segue o agrimensor, observando as suas reacções e tentativas, com um misto de curiosidade e troça. Mas, para além deste interesse dedicado ao forasteiro, como a um cómico num lugar com poucos meios de entretenimento, nada verdadeiramente lhes parece espantoso na sua situação - uma das características da obra kafkiana é o estranho erigido em normal. Em última análise, o próprio agrimensor não se questiona metafisicamente: é um profissional contratado, que tem, por objectivo, chegar ao castelo cujos proprietários requereram os seus serviços, e que, como em certos pesadelos, não consegue lá chegar; irrita-se, procura quem o guie, usa de astúcia, mas sempre em vão. Porém, em nenhum momento vê, no que lhe sucede (ou não sucede), uma ilustração da condição humana, ou do absurdo da existência.

Há, contudo, uma dimensão metafísica neste impedimento contínuo e absurdo. Sartre referia-se-lhe, certeiramente, no prefácio que redigiu para O Estrangeiro, de Albert Camus. Considera Sartre, nisso se demarcando dos críticos que viam, em Camus, «Kafka a escrever como Hemingway», primeiramente: que a escrita de Camus nada tem, na sua essência, que ver com a hemingwayana: a brevidade dos períodos daquele seria totalmente artificial; uma deliberada contenção para provocar um certo efeito, de que, no entanto, às vezes pareceria esquecer-se, resvalando para o excesso de palavras. Em segundo lugar, quanto a Kafka: outro equívoco, porque de Albert Camus estaria ausente, precisamente, o absurdo metafísico. Em Kafka, dir-se-ia que o universo está carregado de misteriosos sinais, que nem sempre entendemos, como se o negar da realização e do contentamento dos seus protagonistas dependesse de alguma entidade (entidades, na verdade), que transcende(m) a sua e a nossa inteligência. Que acentua(m)  a sua e a nossa insignificância. Não se trata só de se ser o joguete de forças ocultas: mas de se ser o joguete de forças desconhecidas, num jogo incompreensível, e cujas regras nos serão para sempre inacessíveis.