sábado, 28 de outubro de 2017

SAUL BELLOW: RAVELSTEIN


Devo a minha mãe, de uma forma mais velada, e a meu avô e a meu primo, incisivamente, não tanto o gosto pelos livros, que é inato, penso, e descobriria sempre, em minha vida, quaisquer que fossem o contexto e as condições, mas o gosto por certos livros e por alguns Autores em particular. Ou seja, devo-lhes não o gosto, mas uma parte significativa do conteúdo do meu gosto pela leitura.

O motor foi algo para que só encontro a designação imprópria de inveja. Inveja por vê-los com aqueles livros que lhes davam tão notório prazer, e lhes demoravam nas mãos, e a que regressavam tanto. Inveja do modo como falavam das suas leituras (meu avô comentava observações do Eça, de Proust), e de autores que nem estavam traduzidos, mas meu primo, estrangeirado que estudava "lá fora", lia por obrigação escolar, ou recomendação dos seus professores. Salinger. Naipaul. Bellow.

O Saul Bellow que meu avô andava lendo, e por muitos anos andou relendo, certamente por conselho de meu primo, era Herzog. E o jovem estudante de filosofia em que entretanto me tornara, encantou-se completamente com essa obra profundamente reflexiva, sobre um professor para quem a filosofia deixara de ser a mera disciplina teórica, infiltrando-se-lhe inteiramente numa vida em acelerada decadência, decomposição e depressão.

Seguindo as pegadas de leitura de um outro sinalizador de pistas, o meu amigo José Santos, que, tardiamente (salvo que, em matéria de leitura, nunca é tarde) entrou na minha vida de leitor, descubro agora um outro romance de Saul Bellow, Ravelstein, cujo protagonista, Ravelstein himself, seria inspirado - conta-me José Santos - no filósofo Allan Bloom. É, portanto, evidentemente um roman-à-clef onde, ocultos sob nomes fictícios, e para além de Bloom e de seu amante, vemos o próprio Bellow; vemos uma das primeiras mulheres deste (com a qual é, aqui, pouco gentil); vemos a última, uma jovem estudante de Bloom/Ravelstein; vemos Leo Strauss, Paul Wolfowitz ou Mircea Eliade (este último, em retrato, igualmente, pouco lisonjeiro: a chave de tradução das personagens em figuras reais encontra-se em vários sítios da Internet - poupo-vos uma lista.)

Os ingredientes que constituem a especificidade bellowana são a prodigalidade de pormenores, os quais fazem de qualquer situação, que ele descreva, um manancial de singularidades e desacertos vivíssimos, criando uma impagável atmosfera de estranheza, sempre na vizinhança do grotesco; uma ironia inclemente; uma erudição que nunca se torna pesada, porque Bellow converte, pelo contrário, todas as referências (de Lloyd George a Michael Jackson, de Sócrates e Platão a Keynes e aos intelectuais do Círculo de Bloomsbury, da Bíblia a Maquiavel, a Hobbes, a DeGaulle, a Churchill, ou às ruas, hotéis e à cozinha de Paris) em questões que nos agarram,  e nos convidam a averiguar mais; e, por fim, a elegância da escrita, que tive a sorte de encontrar impecavelmente traduzida pela mão de Rui Zink. (João Santos, pelo que percebi, não teve essa sorte...)

O Professor Ravelstein, cuja biografia o narrador fora convencido a fazer, pelo próprio Ravelstein, é um homem em que Allan Bloom gostaria provavelmente de se rever: muito alto e desengonçado, de crânio calvo como um ovo, iniciando todos os discursos com um "haaa" ou um "heee" (retenho estas características, porque são absolutamente fiéis ao original: lembro-me de ter reparado em todas elas, numa palestra, sua, sobre Nietzsche, que achei na Internet), exuberante, gastador, frágil, de uma energia, uma inteligência e uma criatividade excêntricas e imparáveis, este homem é-nos apresentado em dois tempos. O primeiro é o do seu súbito enriquecimento: Ravelstein, que, como professor, vivera sempre acima das possibilidades, sem dispensar os fatos feitos por medida nos melhores costureiros, ou os cálices Lalique, os quadros ou a aparelhagem em que ouve a música amada, entre empréstimos e dívidas, publicará um livro que há-de ser sucesso absoluto. Suspeito que se trate da obra de Bloom cujo título foi debilmente traduzido, em português, por A Cultura Inculta. (Ignorava, aliás, que se pudesse enriquecer por via de uma publicação).
O segundo tempo é o da doença e morte de Ravelstein, capturado e definido, pela SIDA, como um cadáver antecipado, um corpo que a morte vai devorando em vida.

Tecido sobre estes dois tempos, o romance de Bellow, sem nenhuma história que não se resuma à dispersão dos episódios que vão subtilmente captando a alma do magnífico protagonista, constitui uma reflexão profunda e interessantíssima sobre a amizade e a intimidade. E sobre o conhecimento do outro.

Esta reflexão é guiada por uma pergunta central. Podemos conhecer alguém - ou pode uma pessoa conhecer-se realmente a si própria - sem havermos inventado mecanismos de comunicação da nossa "metafísica pessoal"? Como exprimir, e transmitir, o "incomunicável" mais íntimo, o que está aquém da linguagem: este universo pessoal de sensações, esta vivência contínua e sem palavras, este eu sem imagem nem representação? Ou - como pensa o próprio Ravelstein, contra o narrador - só o comunicável entre humanos é verdadeiramente importante nas relações, e as lentes da metafísica pessoal seriam um epifenómeno e, pior, um desperdício?

1 comentário:

Bárbara Ferreira disse...

Gostei muito do post, do lado pessoal revelado.

O único livro do autor que li foi "Humboldt's Gift", mas espero ler mais em breve. Irei tirar sugestões daqui.