terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

YUVAL NOAH HARARI: SAPIENS

"Mas o frágil edifício do amor deles ficaria completamente destruído, porque esse edifício repousava sobre o pilar único da sua fidelidade, e os amores são como os impérios: assim que desaparece a ideia sobre o qual estão construídos, também eles desaparecem."

Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

Leio, por estes dias, dois livros, cativos meus "que me trazem cativo". Um é Homens Bons, de Arturo Pérez-Reverte. Outro, Sapiens, de Yuval Noah Harari. Menciono ambos apenas porque me não foi fácil decidir sobre qual dos dois escreveria no blogue.

Sapiens é, como indica o subtítulo, uma breve história da humanidade. E, creiam-me, a história em causa é narrada desassombrada, inteligente e fascinantemente, ainda que em alguns momentos se torne excessivo o peso da interpretação do autor, a qual, não sendo menos plausível ou menos interessante, não deixa todavia de evidenciar o seu carácter de explicação meramente verosímil, entre outras que poderíamos inventar, com a mesma força e o mesmo grau de razoabilidade.

Seja como for, a história dos sapiens, tal como contada por Harari, é muito diferente daquela a que nos habituáramos. E assume o risco do politicamente incorrecto, contextualizando e pesando as consequências teóricas das afirmações apresentadas, e mostrando por que razão certas conclusões foram sempre evitadas, se não ocultadas, pelos cientistas, assustados com a utilização que se poderia haver feito - e que, ao longo do tempo, efectivamente se fez.

Desde a ideia de que coexistiram vários géneros da espécie "homo", para além do "sapiens", e que, portanto, diferentes raças poderão não ter provindo de uma fonte única, até à de que a capacidade humana para o boato foi fundamental na revolução da inteligência e do conhecimento; desde a ideia de que a revolução agrícola foi o maior embuste, no sentido em que, ao invés de uma libertação e melhoria da vida do homem, o tornou um escravo da terra (e o trigo o domesticou, muito mais do que foi por ele domesticado), até à de que o próprio de todas as culturas é a crença religiosa, considerando Harari o liberalismo, o comunismo ou o nazismo como religiões que substituíram a adoração a Deus pela adoração ao Homem; ou ainda quando refere a importância do casamento entre a ciência e o imperialismo para a constituição e a singularidade do Ocidente, tal como o concebemos hoje - em todas as suas abordagens e intuições, Harari é arrojado e provocador. Concordemos ou discordemos, não deixamos o livro sem ter reflectido, duvidado, discutido, aprendido.

A tese central, que subjaz a toda a obra e retorna explícita e continuamente, é a de que os sapiens foram os únicos animais que se tornaram capazes de erigir ordens imateriais. Uma república é uma ideia, a que se adere e pela qual se luta. A liberdade é uma ideia em nome da qual creio que o meu acto é uma escolha. O que são o progresso e o retrocesso, a honra e a propriedade, a inteligência e a sensatez, ou a literatura e o humanismo senão ideias, ordens ideais, pelas quais pautamos as nossas vidas, tomamos decisões, construímos habitações e cidades? O que é o dinheiro, mais do que a moeda ou a nota, que valem pela ideia que os os sustenta? Ou o crédito? O que é uma Pátria? Ou, segundo Harari, Deus - senão ideias?

Consistirá nesse dom da crença a grandeza humana? Ou a sua fragilidade?

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